O poder das narrativas nos games
Os videogames evoluíram rapidamente em poucas décadas. Há 50 anos, jogos digitais eram apenas traços e pontos em uma tela. Com o passar do tempo, acompanhamos, a cada console, uma verdadeira evolução dos gráficos animados. Mas não só eles. As narrativas nos games também evoluíram muito, trazendo histórias cada vez mais complexas.
Se na parte visual, passamos pelo preto e branco, pelo pixel art, desenhos em 2D e 3D, e chegamos até à criação de mundos e universos tão vastos quanto detalhados, é preciso que os elementos de história acompanhem essa evolução.
É verdade que a evolução gráfica parece ter atingido um limite. Apesar de ainda percebemos gráficos cada vez melhores, o salto entre as gerações não parece mais tão significativo.
Por outro lado, as narrativas nos games é algo me parece crescer de maneira galopante a cada ano, porém de um jeito menos visível, mais sutil. Algo que não pode ser comparado apenas em um screenshot ou vídeo curto de gameplay. É o principal fator, que nos últimos anos fez os jogos deixarem de ser vistos apenas como um meio de entretenimento, e se tornou uma nova forma de arte, sendo tratado de igual para igual com filmes, música e até livros.
Afinal, o que é uma narrativa?
A evolução gráfica permitiu mais do que apenas cenários mais bonitos. Ela trouxe a possibilidade de expressar sentimentos nos rostos de cada personagem, criar cenas que parecem tiradas de Hollywood. E, assim, os desenvolvedores viram a possibilidade de contar histórias mais elaboradas do que “resgate a princesa” ou “derrote o supervilão”. Há exemplos de narrativas nos games que tratam até de temas sensíveis como saúde mental – e, na minha opinião, de forma muito mais assertiva que a maioria dos filmes ou romances sobre o tema.
Isso porque narrativa é muito mais do que a história de um jogo. As possibilidades de interação permitem que o videogame construa uma narrativa de maneira diferente de todas as outras as mídias. E essa é, para mim, a maior evolução que tivemos nos últimos anos.
Nos jogos, a narrativa não se limita às cutscenes que assistimos entre batalhas. Ela compõe toda a ambientação do jogo. Narrativa é diálogo, é descrição de itens, são mensagens nas telas de loading, são detalhes de um cenário que te fazem questionar os acontecimentos prévios; são as roupas dos personagens, seu visual, sua forma de se movimentar, seus tipos de ataque (se são brutos e fortes ou rápidos e sorrateiros, por exemplo). Todos esses detalhes, emaranhados em cada momento da sua experiência do game, são construídos a partir da narrativa, que dá vida ao jogo e a toda mecânica por detrás dele.
Mas nem sempre a indústria teve consciência disso, ao menos não totalmente. Por muitos anos, jogos foram criados primeiramente por sua mecânica, sua jogabilidade ou seu estilo de arte, diversas vezes feitos inteiramente sem um enredo específico em mente. Só depois de maior parte do desenvolvimento concluído, é que um roteirista externo era contratado para roteirizar as cutscenes.
O papel das narrativas nos games
Quando os jogos contratavam roteiristas, era comum que esse profissional não fosse da indústria de jogos, mas sim um profissional das áreas de cinema ou TV. Assim, sem ter familiaridade com a mídia para a qual está escrevendo, e chegando tão tarde no processo de criação do jogo, os roteiristas já encontravam diversas limitações logo em seu ponto de partida. Em consequência, tivemos incontáveis jogos com narrativas que:
- São extremamente limitadas, mal elaboradas e servindo apenas como “recheio” de uma gameplay, e/ou:
- Sofrem de grande desconexão com a mecânica, cenários ou outros elementos do jogo previamente desenvolvidos.
Aos que, assim como eu, nasceram na década de 90, tente lembrar dos jogos da sua infância/adolescência e perceba quantos deles tinham uma histórias rasas ou quase nenhuma história. Era comum ainda jogos que não eram coerentes ao longo da história, como, por exemplo, gameplays em que, quando um personagem morria, bastava usar um item para revivê-lo; mas, em um cutscene, um tiro poderia ser fatal até o fim do jogo.
Há, claro, exceções. Jogos de primeiras gerações poderiam ter histórias complexas, como é o caso dos primeiros Silent Hills, em que a mecânica de combate reforçava a fragilidade dos protagonistas da história. Esse movimento, entretanto, ganhou muito mais força nesta última década, em que vemos uma verdadeira revolução na maneira de narrar histórias de jogos – e a exceção praticamente se tornou a regra, com uma valorização das estruturas narrativas por parte de todos os segmentos, desde os criadores até os consumidores.
Um exemplo recente e premiado: God of War!
Para falar da importância da narrativa em jogos, trouxe como exemplo o último God of War. Em uma cena do seu documentário de desenvolvimento, Raising Kratos, é possível ver o diretor Cory Barlog conversando com membros-chave de cada área de desenvolvimento, no que parece ser um dos estágios iniciais de criação. Nessas conversas, Cory explica os principais pontos da narrativa a serem atingidos, as motivações dos personagens, o que os conecta uns aos outros e onde eles vão chegar ao fim da jornada.
Assim, a narrativa da história era clara desde o início. Era como se o diretor dissesse: “Roteiristas, programadores, desenhistas, designers, TODO seu trabalho tem que ser feito com ESTES pontos em mente. TUDO que fazemos tem que convergir a ISTO.” O resultado é uma obra de arte, reconhecida como tal ao ser amplamente premiada, conquistando inclusive o maior prêmio da indústria: o Game of the Year de 2018.
E não é para menos. Cada elemento do jogo parece criado com o objetivo de servir a um propósito da narrativa. Em toda a franquia, por exemplo, a câmera era usada de forma a transmitir uma perspectiva aérea, isométrica, afastada dos personagens. O objetivo dessa escolha era mostrar o combate de forma extravagante, com o máximo de elementos possíveis, esbanjando dezenas de inimigos na tela. Agora, porém, o novo título passou utilizar a câmera próxima ao chão e aos personagens, valorizando uma perspectiva mais crua e realista da guerra, e não mais a sua beleza estética.
Outra escolha narrativa foi a adoção de um plano sequência – onde não há um único corte de câmera desde o início da gameplay até a última cena do jogo. Além de ser tecnicamente desafiador, mesmo com a tecnologia atual, a opção tem o propósito de nos aproximar aos dois principais personagens do jogo.
A parte técnica compõe as narrativas nos games?
Respondendo logo de cara: sim. Juntas, as técnicas convergem à principal mensagem da narrativa: a de que Kratos não é mais um líder de exército buscando vingança desenfreadamente. Ele é um pai buscando se conectar com um filho (Atreus), enquanto o ensina o que significa ser um Deus. E o filho, querendo ou não, ensina a seu pai o que é ser humano. Assim, ambos buscam se reencontrar no mundo, após a morte da mãe de Atreus. Dessa forma, a câmera mais terrena e o plano sequência ajudam a centrar toda a narrativa nesses dois personagens, em suas emoções e sentimentos, e em como eles evoluem ao longo do jogo.
Outro exemplo de complexidade narrativa que sempre gosto de citar é Hellblade: Senua’s Sacrifice. O principal objetivo do jogo é transmitir a experiência do que é travar uma batalha contra uma doença real e que atinge milhares de pessoas no mundo: a esquizofrenia. Para a sua criação, os desenvolvedores tiveram que estudar o tema a fundo, se debruçando sobre a doença a partir da visão de médicos especializados, de familiares e, claro, dos próprios pacientes.
No jogo, entramos na pele de uma guerreira celta que convive desde criança com a doença. Senua tem visões e ouve vozes que parecem reais – mas não são. E todos os aspectos da narrativa convergem para transmitir a sensação de encarnar essa personagem. Desde os inimigos, feitos de sombra e que desaparecem no ar ao serem combatidos, até os quebra-cabeças e obstáculos do jogo, que são resolvidos por meio de uma mudanças de perspectiva da personagem, eles nos fazem questionar: será que aqueles obstáculos realmente existiram? Ou estavam na cabeça de Senua o tempo todo?
O poder de histórias bem contadas
Elementos como os de Hellblade: Senua’s Sacrifice incomodam e levantam questionamentos acerca da realidade de cada elemento do jogo, de cada peça do cenário, de cada personagem da história e, finalmente, do próprio objetivo da jornada. Assim, durante as horas de jogo, nos sentimos presos à doença e à sensação claustrofóbica de experimentarmos uma realidade em que as linhas entre o real e o imaginário se confundem.
São inúmeros os exemplos de narrativas bem construídas. É preciso percebemos, porém, que, enquanto a evolução dos gráficos dos jogos parece ter atingido um patamar de qualidade tão alto, as possibilidades dos roteiros para videogame estão apenas começando a ser desenvolvidas. Isso porque, aliada à “quase-perfeição” técnica, as narrativas complexas e todas as possibilidades do mundo dos games possui uma capacidade de imersão maior do que as de mídias tradicionais, como a TV e o cinema, e permitem uma experiência mais individualizada por parte dos jogadores – e é justamente isso que as diferencia enquanto forma de expressão artística.
Fica meio óbvio que esse é um dos assuntos que mais me intrigam enquanto jogador. Se você leu até aqui (Ufa!), tente observar esses aspectos nos próximos jogos. Tenho certeza que, assim como eu, você vai se surpreender.