Another Crab’s Treasure | Review
Sabe aquele fenômeno gostoso de começar um game com pouquíssimas expectativas para, no final, sair muito surpreso? Pois é, Another Crab’s Treasure não me comoveu muito quando o vi pela primeira vez numa Nintendo Direct e por um motivo bem simples: ganhou o carimbo Souls-like do fundo do mar. Ei! Foram as primeiras linhas da divulgação que disseram isso!
Olha só como a desenvolvedora e editora Aggro Crab o descreve: ”Another Crab’s Treasure é uma aventura Souls-like emocionante ambientada em um mundo subaquático em ruínas. Como Kril, o caranguejo eremita, você precisará usar o lixo ao seu redor (como conchas) para resistir a ataques de inimigos muitas vezes maiores. Embarque em uma caça èpica ao tesouro para comprar sua concha de volta e descubra os segredos obscuros por trás do oceano poluído.”
E não me entenda mal, platinei Dark Souls e gosto do estilo – nem o Miyazaki gosta de categorizar outros jogos como “Souls-like” (há tantos componentes na pedra fundamental criada pela From Software que o entendimento do termo varia muito de pessoa pra pessoa).
Another Crab’s Treasure importa, sim, algumas características da “punitiva” série, mas o faz de tal forma que mais lembra um jogo de plataforma 3D com bom combate. E o melhor: assim que começar, teste as águas e ajuste sem piedade as opções para deixar a experiência bem gostosa. Posso te contar um pouco mais nesta análise por que Another Crab’s Treasure me fisgou?
Another Crab’s Treasure – antes do mergulho
Para manter a resenha de Another Crab’s Treasure na nota positiva que o game merece, vou tirar logo da frente incômodos problemas de superfície. Esses problemas foram tão grandes que… a chave recebida pelo Pizza Fria era para Nintendo Switch. Comecei o game e joguei por cerca de três horas. Contudo, frustrado pelo desempenho errático, carregamento constante entre áreas e travadas excessivas em função da quantidade absurda de partículas na tela e dos feixes de luz, decidi aproveitar a versão de Game Pass, comecei de novo no computador e fui feliz.
Pois é, o problema está muito mais na falta de otimização e, provavelmente, nas limitações de tempo e de recursos do time para adaptá-lo – como sabemos, o Switch dá conta de jogos muito mais complexos e vibrantes, entretanto estamos falando de uma dev indie. Assim, o console tem potência para os belos visuais de Another Crab’s Treasure, mas não potência suficiente para compensar gráficos desnecessariamente pesados. A versão sofre ainda com ausências para aliviar o processamento, como as gotículas na tela, menos pedacinhos de plásticos e bolhas flutuando na água, e o desfoque da câmera também ficou de fora.
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Embora os carregamentos, por exemplo, aconteçam também no PC e no Xbox, não são nada que o SSD e uma placa gráfica mais parruda não minimizem. Aliás, vamos lá. Você tem acesso a Another Crab’s Treasure nos consoles Nintendo Switch, PlayStation 5 e ecossistema Xbox – incluindo Xbox One, Xbox Series S|X e computadores com Windows, além de ter a jogatina intercambiável do Play Anywhere. No PC, o título está na Steam.
Para referência, joguei num AMD Ryzen 7 5000, com 32 GB de RAM e uma RTX 3070Ti com todas as opções visuais no máximo. E o trailer que ilustra este review é de um Nintendo Direct, mas não foi capturado rodando num Nintendo Switch.
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A Guerra das Lagostas
Tá, “uma imagem vale mais do que mil palavras” logo nos leva a pensar que temos um Souls-like (socorro) de Bob Esponja. Tudo bem, é por aí mesmo. Entretanto, as imagens deixaram de contar dois aspectos: a excelente escrita e a jogabilidade de plataforma 3D. Aliás, a Guerra das Lagostas do subtítulo é um episódio real, sério e algo cômico por disputa do que era território nacional ou águas internacionais. A solução? Digamos que dependia se as lagostas saltavam no fundo do mar ou se elas nadavam.
A abertura de Another Crab’s Treasure é um charme à parte, pois lembra um documentário sobre nosso planeta com um roteiro que nos prepara para o tema ambiental evidente no game. A poluição desenfreada mudou a vida no oceano: o que antes era uma cadeia alimentar virou um sistema econômico capitalista no qual os microplásticos são a moeda vigente. Desta forma, os mais ricos são aqueles que acumulam mais lixo e o status quo define o nível trófico dos habitantes marinhos.
A história de Kril é simples – esse caranguejo eremita faz jus ao nome da espécie e vive nas piscinas, longe do exaustivo convívio social. Caricato como um desenho animado – bem similar àqueles da Fenda do Biquíni, sabe? –, Kril só não anda nu por aí porque “veste” sua casa, a concha, e tem uma hortinha de Vitalgas para sua subsistência. Eis que numa manhã ensolarada, um tubarão agiota (mais parece um fantoche) toma a concha-casa de Kril sem pedir licença, já que o crustáceo não tinha como pagar os impostos de propriedade.
Com uma qualidade de animação deslumbrante para um jogo independente, o coloridíssimo cenário contrasta com o teor da conversa na selvagem tomada de lar. Escritos com muito cuidado, os diálogos abordam temas sociais recorrentes pesados ao mesmo tempo que aplicam um filtro cômico. E com um elenco diverso, a ótima escrita de Another Crab’s Treasure garante personalidade e vivacidade a cada ser vivo do fundo do mar.
Porém, tem um detalhe: se o nome Douglas Adams não te diz nada, talvez você não fisgue como dos momentos no título derivam de suas obras. Escritor e roteirista britânico, Adams assinou esquetes do clássico humorístico Monty Python’s Flying Circus e é mais conhecido pela “trilogia de cinco livros” O Guia do Mochileiro das Galáxias. No livro, Arthur Dent descobre que sua casa está prestes a ser demolida para dar lugar a uma autoestrada, mas, minutos depois, isso não importará já que a Terra também está prestes a ser destruída por uma raça de alienígenas burocráticos.
Os temas vão além, com sátiras sociais e de preservação ambiental – aliás, plot-twist: Adams era um ferrenho conservacionista –, e durante o game frequentemente me sentia lendo O Guia do Mochileiro das Galáxias. Então, se esse humor te pega, pese este ponto forte. A concha é a sua casa, seu lar? Será que estar tranquilo e sem conflito em seu lar é o que te faz feliz?
Isso tudo porque, nem tão longe do isolamento de Kril, o mundo marinho é regido pelo lixo; o lixo significa riqueza e nada de dizer “do lixo ao luxo”. O lixo É o luxo. Mesmo que humanos não apareçam e as criaturinhas vivam suas vidas sem saber da nossa existência, claramente afetamos a pirâmide social do fundo do mar e isso trouxe outro problema: a poluição capaz de tirar a consciência dos animais que vivem no mar.
É nosso dever atravessar as piscinas até o recife para entender porque o Dia do Lixo é celebrado, quem está por trás do monopólio submarino e combater a poluição na tentativa de recuperarmos nosso querido lar, a concha. Ao final de toda jornada, Another Crab’s Treasure é uma sátira tragicômica do nossso cotidiano e um vislumbre de para onde o mundo vai com a mudança climática caso não tomemos ação.
Jogabilidade
Mas não só de bom texto e de história vive um jogo (né? NÉ?), e a jogabilidade em Another Crab’s Treasure é algo peculiar. Confesso que fico reticente com a questão do Souls-like porque, se eu estou aqui, conversando contigo sobre Another Crab’s Treasure, soltar a palavra é algo meio vazio. Em primeiro lugar, quem sabe se você tem a referência do que seria um Souls-like; ou ainda, posso ter em mente impressões e abordagens diferentes sobre as mesmas características; ou mais grave, dizer sem detalhar sequer o que, de fato, traz dos títulos da From Software.
Vamos à primeira semelhança! Você se lembra dos microplásticos que são usados como dinheiro no fundo do mar? (Corta para seu Sirigueijo dizendo, “Eu goOosto de dinheeeiro!”) A poluição oceânica é tamanha que a vida marinha contaminada ataca sem negociação, sugada de qualquer consciência. Desta forma, os inimigos abatidos liberam os tais microplástico em vez das “almas” dos Souls-like, e eles têm um uso similar – serão trocados para deixar nosso companheirinho invertebrado mais forte, além de servirem como moeda para a compra de itens em lojinhas.
Outro aspecto herdado (apesar de remixado) é a dinâmica de combate, ou seja, aquele balé no qual o jogador precisa aprender o ritmo do inimigo na tela para rolar na hora certa, levantar o escudo para bloquear e aproveitar uma brecha marota para atacar. Tudo isso tem, em Another Crab’s Treasure, uma pegada mais leve, exigindo mero domínio superficial dos comandos. Sem suadeira!
Contudo, caso o cansaço bata, saem os acampamentos pelo mapa conhecidos como Bonfires, entram as Conchas da Caramuja. Estes pontos de repouso são usados como viagem rápida e para gastar microplásticos nos atributos de Kril com um porém: os inimigos já derrotados serão revividos.
Por fim, o ponto mais emblemático de qualquer Souls para mim: a recolhida das almas quando o personagem é derrotado. Esta mecânica entra em vigor quando Krill morre e todos os microplásticos ficarão numa bolsa onde a fatalidade aconteceu esperando ser recolhidos. Assim, ao renascer numa Concha da Caramuja, é seu dever refazer o traçado para recuperá-los enquanto supera os inimigos renascidos pelo caminho e acumula mais microplásticos. Mas… caso morra outra vez antes de chegar até a bolsa, ela estará perdida para todo sempre, dando lugar a uma nova bolsa e recomeçando o ciclo.
E então temos as diferenças que valem menção. Uma delas é que Kril rola, pula e ataca com a frequência que puder, sem depender de uma barra de vigor. O garfinho de bolo encontrado faz as vezes de uma espada, será seu parceiro por toda a jornada e vai ser refinado no ferreiro da cidade grande, Nova Carcìnia – jamais substituído por uma alabarda ou um machado.
Quando o assunto é defesa, nosso protagonista eremita fica nu sem sua bela concha, restando catar qualquer porcaria pelo caminho para se vestir e, consequentemente, aumentar as defesas. Ao contrário do garfo e do equipamento em jogos Souls, elas não serão aprimoradas. Entretanto, as conchas contam com uma barra de vida própria (em azul) e a maioria delas conta com uma habilidade especial: o potinho de Yakult ou o Makimono que regeneram a saúde, enquanto tampas de cola giram como um pião e ferem os inimigos.
Talvez você tenha se perguntado, “para que Kril precisa ficar mais forte?” Bom, quando o assunto é combate, o artropoda conta com quatro atributos básicos: vitalidade aumenta os pontos de vida, resistência reduz o dano tomado, ataque aumenta sua força e Umami é uma força misteriosa das correntes aquáticas dominada por poucos, um tipo de magia.
Aprimorá-los é essencial para que inimigos mais robustos não sejam barreiras eternas e intransponíveis. Entretanto, não há classes, tal qual mago, cavaleiro, ladrão, monge… E são só esses quatro atributos mesmo, não uma complexa pilha de números e ramificações.
Preciso falar um pouco sobre as técnicas Umami, já que Kril guarda sua energia em unidades (as estrelas acima da barra de energia e da vida da concha). Essa energia é liberada quando usamos as habilidade das conchas que citei acima, por exemplo, com custos variáveis. Outro gasto de Umami acontece ao usar as Adaptações, técnicas especiais incríveis que resultam em golpes potentes. Curiosamente, a magia se regenera com golpes do garfo nos inimigos. Isto nos obriga a tomar uma postura mais ofensiva em combates – exigindo alternância da nossa parte entre ataques físicos e ataques mágicos.
Acessibilidade, elo perdido e plataformas
Entre games similares à série da From Software num espectro rumo àqueles de aventura, alguns que joguei incluem Lords of the Fallen, Ashen, e migrando aos poucos, Blue Fire, Zelda: Breath of the Wild e Tears of the Kingdom. Another Crab’s Treasure se destaca como um título peculiar, pois parece ser o elo perdido que conecta todos.
Se acima apresentei o que o tìtulo da Aggro Crab herda e como ele remixa suas mecânicas, saiba que Another Crab’s Treasure vira uma plataforma 3D muito gostosa de jogar e completamente recomendável a todos quando ligamos as opções de acessibilidade. A lista pode até não ser a mais exaustiva, mas configurar em especial “não perder itens [e microplásticos] ao morrer” MUDA a experiência do jogador.
Kril já teria suas patinhas crocantes testadas com saltos e um anzol com linha de pescar que funciona como um arpão (ou um hookshot para veteranos de Zelda). Pelo fundo do mar, visitaremos lugares como a orla das Piscinas, o arenal de Águas Rasas, a cidade enorme de Nova Carcínia e lugares de lixo e pilhas de palácios de isopor – fino do fino, senhores – e em todos eles a verticalidade exige uma boa dose de coordenação motora à moda antiga dos tempos GameCube, PlayStation 2 e Xbox (o original, não essa coisa que temos hoje).
O melhor é a capacidade de Another Crab’s Treasure incorporar em suas lutas os saltos, as travessia e labirintos em certos momentos com uma dose agitada de taurina digital – você no controle pode assumir uma postura veloz e agressiva, já que o arpão te leva até as redes de pesca, anzóis, fisga inimigos e, se preferir, te puxa até eles como um “molinete reverso”.
O meu bom senso diz para que todo jogador teste as águas no começo (desculpe) e altere as opções sem medo de ser feliz, sem bloqueio de conquistas nem de progresso. A aventura de Kril não é mesmo definitivamente um “tamanho único” e, ainda que tenha a câmera errática aqui e acolá, sobretudo quando o bicho pega, deve ser vivida por todos.
Uma das configurações permite reduzir a velocidade jogo (ajuste este cada vez mais comum) enquanto outra dá uma arma ao nosso herói, permitindo “tratorar” oponentes com um só tiro fatal e colher experiência para crescer rápido e, assim, prosseguir “naturalmente”.
Som, dublagem e tradução
Se o a tradução está bem-feita, fazendo da aventura uma deliciosa leitura, por outro lado, a dublagem apresenta somente vozes em inglês. Vou me repetir, mas a ótima direção consegue extrair dos caricatos personagens um clima de desenho matinal dos sábados, ou… quem sabe, bem ao estilo daquela esponja amarela e quadrada que mora num abacaxi.
Kril soa como um jovem adulto perdido na vida, Chitan (uma bruta lagosta sentinela) soa como se imagina a voz de uma destemida amazona… Os vigaristas e o elenco de apoio, quando falam nas cenas, são igualmente competentes. É um pormenor e uma pena que o game não tenha abusado na tentativa de uma dublagem completa, até dos balões – como fazem os JRPGs.
Em função do desempenho que engasga às vezes, principalmente na transição entre áreas, efeitos sonoros parecem entrar atrasados – nada que atrapalhe, mas te puxa da imersão (submersão?) proporcionada por Another Crab’s Treasure. Já a música de elevador é gostosinha, contudo fica rapidamente repetitiva – isto é, quando ainda está presente –, e infelizmente não triunfa nem mesmo se destaca tanto quanto outras partes do game.
Vale a pena jogar Another Crab’s Treasure?
De forma direta, sim, Another Crab’s Treasure é um título que vou recomendar para amigos iniciados ou não em Dark Souls. Personalizável ao gosto do freguês, um conto que pode soar clichê, mas está redigido de forma esperta e com elegância, acertando em cheio as notas da fábula que se propõe a contar e misturando cultura pop numa jornada que dura entre 15 e 20 horas.
A recomendação cai, claro, se estivermos falando da versão para Nintendo Switch – foi a primeira vez que identifiquei um jogo bacana e, frustrado, resolvi tentar forçar em outra plataforma. Assim, tente jogar num PC ou num console mais forte. As travadas por carregamentos mesmo em máquinas parrudas não obscurecem o bom equilíbrio entre plataformas e combate a serem percorridos e superados por Kril.
Another Crab’s Treasure é a convergência de muitas ideias e, por incrível que pareça, o resultado é surpreendente, coeso, old-school e atual, acessível para um público de todas as idades que joga pela diversão acima da dificuldade; é uma fábula moderna e memorável.
*Review elaborada no Nintendo Switch, com código fornecido pela Aggro Crab.