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Cris Tales | Review

Cris Tales é um jogo independente colombiano que se passa em um mundo devastado pela guerra e pela incompreensão entre seus povos. No jogo, vivemos a jornada de Crisbell, uma órfã com o poder de ver presente, passado e futuro ao mesmo tempo com um RPG de turnos, uma homenagem aos clássicos da década 1990.

Quer saber o que achei deste breve (para os padrões de um RPG) e sentimental jogo independente? Confira na análise.

Ficha técnica de Cris Tales

Para esta análise, joguei Cris Tales no Nintendo Switch com código fornecido pela editora. O desempenho no modo portátil é igual ao desempenho quando atracado na doca.

O jogo não está traduzido ao português do Brasil, todos os diálogos são falados em inglês e o idioma segue a configuração do sistema, sem dar a opção de mudá-lo por menus.

SQ NSwitch CrisTales image500w Cris Tales
Cris Tales
Português do Brasil
RPG, JRPG
10 anos
Desenvolvedor: Dreams Uncorporated em parceria com SYCK
Editora: Modus Games
Disponível para:
Nintendo Switch
PlayStation 4 e PlayStation 5
Xbox One e Xbox Series X|S, também no Xbox Game Pass
Steam
Epic Games Store
GOG
Google Stadia

Realismo mágico digital, uma resposta e uma homenagem a RPG tradicionais

Talvez um dos conterrâneos mais reconhecidos pelo mundo de Cris Tales tenha sido Gabriel García Márquez, consagrado com um Prêmio Nobel de Literatura pelo conjunto de sua obra.

O escritor colombiano não inventou a corrente marcante da identidade e da literatura latino-americana denominada realismo mágico, mas foi o grande responsável por consagrá-la.

Esse estilo, que também se conhece como realismo fantástico e realismo maravilhoso, tem por característica fundamental fundir o universo mágico à realidade, colocando elementos estranhos como algo corriqueiro. Não só isso: o realismo mágico apresenta elementos mágicos de forma tão intuitiva que eles dispensam apresentação.

Cris Tales é um RPG independente da Colômbia com belíssimas animações. (Imagem: Reprodução/Nintendo Switch)
Cris Tales é um RPG independente da Colômbia com belíssimas animações. (Imagem: Reprodução/Nintendo Switch)

Toda essa volta vai ter explicação com Cris Tales, mas ainda preciso dizer que a corrente literária surgiu em uma época conturbada da sempre conturbada América Latina – mais ou menos pelos anos 1960 e 1970, junto quando nosso continente era varrido por regimes autoritários violentíssimos.

Olha, García Márquez não gostava do nome realismo fantástico e costumava dizer que só escrevia dentro do realismo – “A realidade que é mágica, não invento nada. Não há uma linha nos meus livros que não seja realidade. Não tenho imaginação”.

Você que está lendo esta análise pode até nunca ter lido “Cem anos de solidão” * ou “O amor nos tempos de cólera” **, mas saiba de antemão que os desenvolvedores de Cris Tales – intencionalmente ou não – reverenciam sutil e elegantemente suas raízes culturais.

*Se você já passou da época do vestibular, pare o que estiver fazendo ou a série que estiver maratonando
**Recomendável, muito
 Em qualquer uma das obras, certamente você verá outro Brasil e outra América Latina

Assim como na literatura do autor, a história e a ambientação de Cris Tales se passam em um mundo fantástico, com um elenco de raças distintas, de magos, de androides viajantes do tempo, de máquinas que funcionam com a mágica extraída do garimpo de pedras preciosas, como safiras e rubis.

Crisbell, a protagonista, é uma garotinha criada no orfanato da cidade onde nasceu desde a morte de sua avó. Enquanto rotineiramente colhia rosas, vê um sapo amarelo e de cartola que lhe rouba uma das flores. Correndo atrás do anfíbio, descobre que ele pode falar e a perseguição termina perto do vitral da catedral do lugar, um mosaico encantado que guarda uma conexão para os poderes mágicos de Cris, transformando-a em uma maga do tempo capaz de ver futuros possíveis e de bisbilhotar eventos passados.

A magia como algo habitual (✔️) e toques de realidade (✔️).

A direção de arte de Cris Tales acerta em cheio, mas as animações são lentas. (Imagem: Reprodução/Nintendo Switch)
A direção de arte de Cris Tales acerta em cheio, mas as animações são lentas. (Imagem: Reprodução/Nintendo Switch)

Ah! Bem que me esqueci de dizer outra característica: no realismo mágico o tempo é distorcido, visto de uma forma cíclica em vez de linear. Passado e presente se repetem ou são variações de acontecimentos muito parecidos.

Sabe como Crisbell é uma maga do tempo? Pois é, para entender a causa das revoltas e crises em sua cidade, ela partirá em busca de outras catedrais na esperança de que seus mosaicos sejam encantados e, assim, lhe ampliem os poderes. Eventualmente Cris descobre que faz parte de uma trama temporal (hehehe) conspirada pela Imperatriz do Tempo, alguém cujo objetivo é tornar-se ditadora do sempre.

Pela jornada, além de fazer amizades com outros magos (um elemental, outro do tempo) e um androide, por exemplo, suas ações têm a força latente de alterar o curso do futuro.

Uma missão paralela, por exemplo, envolve entrar na floresta para destruir um robô gigante extrator de matéria-prima. Essa matéria-prima, por sua vez, serve de combustível para outras máquinas e robôs. Estava tudo indo bem até o robô ser reprogramado por um líder opressor. O robô então passou a detectar rastros do elemento fundamental em mineradores e animais, virando um genocida.

Tensão entre tecnologia e superstição e espiritualidade (✔️). Retrato de estados autoritários e repressão (✔️ e ✔️).

Passado, presente e possíveis futuros: como suas ações afetam o curso da história? (Imagem: Reprodução/Nintendo Switch)
Passado, presente e possíveis futuros: como suas ações afetam o curso da história? (Imagem: Reprodução/Nintendo Switch)

Estou tentado a dizer que a bagagem emocional é uma característica mais forte em qualquer RPG mais forte até que o próprio desenrolar da história. Digo isso porque um RPG requer um jogador engajado; um jogador imerso no conto do jogo não pelo enredo, mas pelo vínculo que cria com o elenco, espelhando neles versões de quem está no controle e das pessoas que conhece.

Por essa razão, Cris Tales explora mais os laços criados que o ineditismo ou a força de um superenredo. Os visuais parecem trazer o flat design casado com cores vibrantes e belíssimas animações. Alguns setores rompem com a textura de colcha de retalhos e, apesar de não ver muita coerência, a mistura funciona bem. Belas composições de piano e de violão, uma pegada bem latina, ecoam do início ao fim, cadenciam batalhas, mas podem ficar um tanto repetitivas antes do final.

A história em Cris Tales é uma fagulha para que você possa curtir uma jornada simples e muito estilosa, mesmo que não seja revolucionária.

Cris Tales busca se inspira nos precursores do gênero na década de 1990, como Chrono Trigger e Super Mario RPG. Apesar disso, é tão breve e simples que me parece ser direcionado para iniciantes em RPG. O jogo é mais palatável e anda de mãos para quem nunca jogou o estilo antes e veteranos até podem encontrar diversão, mas seria como “comfort food”, já que a jornada é curtinha, quase 30 horas acompanhadas com personagens divertidos, habitantes de um continente com visuais peculiares e belos temas musicais…

Assim, Cris Tales é uma jornada imperfeita como a América Latina, marcada por alguns defeitos técnicos que parecem simples de resolver, mas impossíveis de desmanchar sem comprometer a principal mecânica do título: a abordagem do tempo de e de mudar a realidade na qual vivemos.

Aperte o botão novamente quando o golpe fizer contato para dano extra, assim como Super Mario RPG. (Imagem: Reprodução/Nintendo Switch)
Aperte o botão novamente quando o golpe fizer contato para dano extra, assim como Super Mario RPG. (Imagem: Reprodução/Nintendo Switch)

Jogabilidade: nem todo mundo ama a Cris

Tratando-se de um RPG, Cris Tales marca os pré-requisitos do gênero: você precisa conversar (e muito) com outros habitantes para entender o a situação e descobrir o que deve fazer. Sem problemas, pois Cris deixará o orfanato, recrutará uma pequena gangue e partirá em busca dos vitrais encantados perdidos em catedrais.

Sendo inspirado nos RPG clássicos dos 1990, Cris Tales apresenta alguns problemas e revive algumas coisas interessantes.

Cris se martiriza quando pensa se fez a escolha certa. (Imagem: Reprodução/Nintendo Switch)
Cris se martiriza quando pensa se fez a escolha certa. (Imagem: Reprodução/Nintendo Switch)

Começando pela ala dos problemas (afinal, quero gostar deste jogo mais do que realmente gosto).

Em primeiro lugar, o principal demérito é entregar objetivo a toda hora, o famoso “dar a mão ao jogador. Matias, o sapinho amarelo e falante, diz claramente aonde ir, com quem falar, o quê fazer. Existe até um botão dedicado para o sistema de dicas (Y no Switch). Muitas dessas idas e vindas são bobas ou infrutíferas – só falar com um personagem e voltar, sem instigar a investigação.

Em segundo lugar, está a lentidão – por várias razões. As batalhas aleatórias (ou seja, você não vê os inimigos no cenário, os combates são “sorteados” ao andar por certas áreas) e exigem carregamentos demorados cons.tan.te.men.te. Constantemente!

A lerdeza do sapo Matias como viajante do tempo também irrita. Matias é um sapo idoso e lento no futuro; igualmente devagar no presente; um girino no passado. A coisa piora quando, no presente, Matias te segue, contudo fica constantemente para trás.

Matias transita pelo tempo e vê o conflito de raças exiladas. (Imagem: Reprodução/Nintendo Switch)
Matias transita pelo tempo e vê o conflito de raças exiladas. (Imagem: Reprodução/Nintendo Switch)

Por fim, a movimentação da protagonista pelos labirintos rusticamente construídos, usando pontos cardeais (norte, sul, leste, oeste), é morosa. Mais que isso: os ambientes têm certa profundidade 3D nessa simplicidade estrutural apesar de Cris se mover só em quatro direções, o que resulta numa estranheza ao andar na diagonal.

Tudo bem que a ideia é controlar Crisbell, ativar o salto temporal, realizar a ação pedida no passado ou no futuro, voltar para Cris. Mas, mas, mas… Soa complicado, né? Um pouco chato até.

Falando sobre a mecânica que faz de Cris Tales um jogo único: repare como a tela nas cidades é repartida em três áreas: à esquerda está o passado; ao centro, controlamos o presente; à direita, o futuro.

Alternar e ver passado e futuro funciona melhor em batalhas que no mundo. (Imagem: Reprodução/Nintendo Switch)
Alternar e ver passado e futuro funciona melhor em batalhas que no mundo. (Imagem: Reprodução/Nintendo Switch)

O sapo Matias é uma espécie de entidade atemporal: ele transita pelos três tempos sob nosso comando. Matias poderá, por exemplo, recuperar um livro no passado que está queimado no presente; ele pode ainda ouvir conversas passadas que mudariam o curso da história.

O conceito é muito interessante. É muito interessante mesmo. Infelizmente Cris Tales não conseguiu executá-lo com a grandiosidade que a ousadia conceitual pedia. E eu me sinto mal fazendo esta crítica, pois o jogo é um feito de um time independente, um feito que eu não fui capaz de conquistar ainda. Mesmo assim vejo soluções relativamente simples para melhorá-lo.

A divisão tripartida da tela tenta mostrar três tempos? Sim. Funciona? Mais ou menos, nunca teremos a visão do canto esquerdo, por exemplo, do futuro, principalmente se formos ao futuro. O ponto focal como jogador está sempre no presente, na movimentação. E mesmo assim, a mera existência de todos os cenários em múltiplas realidades é algo legal de ver, mesmo se falho.

A solução que vi durante toda a jornada: manter o presente contido em um círculo centralizado e com foco em Cris, dando ao jogador o poder te alternar o entorno entre passado ou futuro. É uma medida antifrustração fácil e eficaz. Confira as escolhas nas imagens abaixo:

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Aviso de bug potencial: em determinado momento, o jogo não reconheceu todas as missões secundárias feitas, limitando as opções. Precisei reiniciar no último ponto salvo, perdendo parte do progresso (uma batalha demorada).

Fazer tudo o possível no presente para que o futuro possa ser diferente

Todas as cidades contam com missões secundárias e o papel dessas belas distrações não deve ser ignorado.

Por um lado, a fórmula é bem simples: o jogo quer que você complete todas as missões secundárias pertinentes a uma cidade antes de seguir adiante. Todas elas, sem exceção. Quando a oportunidade de dar desfecho ao episódio surgir, Cris terá livre escolha sobre opções que afetam o futuro. Deixe de completar alguma reduz o poder de decidir, tendo menos alternativas em mãos.

Por outro lado, esse sistema tem a chance de ser o primeiro de um jogo mais elaborado e intuitivo no futuro. Em Cris Tales ainda é difícil prevermos as consequências de nossas ações, que devem ser feitas ali, quando surgem, sem o mínimo esboço.

Um exemplo rápido: quando depomos um tirano, quem deve liderar? Deixamos sua viúva que parece não compartilhar os mesmos ideais no poder ou o líder sindical que está do lado do povo? Será que ele será um bom líder ou vai se corromper?

Cris Tales não esboça as mudanças repentinas e o que elas acarretam. Ao completar todas as missões secundárias deste arco, somos agraciados com a escolha de criar um conselho. Parece interessante… Será? Em muitas delas não deu nem tempo de me envolver o suficiente com a luta dos personagens ou de ver o ponto de vista de cada um.

Mande inimigos para o passado e ver versões mais fracas ou para o futuro com todo o dano de envenenamento. (Imagem: Reprodução/Nintendo Switch)
Mande inimigos para o passado, transformando-os em versões mais fracas, ou para o futuro, tomando todo o dano de envenenamento. (Imagem: Reprodução/Nintendo Switch)

Combate em três tempos

Essa tela estranhamente dividida e o conceito temporal brilham melhor no combate: Cris é capaz de alternar linhas de tempo dos inimigos ao redor, mandando aqueles à esquerda para o passado e jogando aquelas à direita para o futuro. Um problemático inseto monstruoso no presente volta a ser uma larva menos intimidadora no passado (e com menos pontos de vida também!). Aplique veneno em um inimigo hoje e, ao aplicar uma viagem para o futuro, veja todo o dano ser aplicado em um só turno! Assim como enferrujar escudos intransponíveis ao associar a magia de Cristopher, seu amigo e mago elemental, com a passagem dos anos.

É estranho no começo, mas a estratégia – principalmente quando tipos diferentes de inimigos compõem a batalha em ambos os lados da tela – estimula a criatividade e mantém Cris Tales desafiador. Outro componente crucial do combate são os pontos de sincronia entre a equipe, acumulados aos poucos pelo time e que liberam ataques especiais em conjunto.

Opa, já ia me esquecendo. O combate tem ainda um detalhe muito legal: os desenvolvedores se inspiraram em clássicos como Super Mario RPG: Legend of the Seven Stars e, em algum momento da animação do golpe, a tela escurece rapidamente – é aí que você aperta o botão A (no caso do Switch) para aplicar um segundo golpe e arrancar mais dano. Ou para se proteger e esquivar, o golpe vier de um inimigo.

Batalhas são o ponto alto de Cris Tales, mantendo desafio e estratégia constantes. (Imagem: Reprodução/Nintendo Switch)
Batalhas são o ponto alto de Cris Tales, mantendo desafio e estratégia constantes. (Imagem: Reprodução/Nintendo Switch)

Vale a pena jogar Cris Tales?

Visuais lindos e estilizados com flat design (chapados), uma trilha sonora responsável e todos os diálogos dublados, algo que confere um pouco mais de emoção e de proximidade com o elenco. O que mais podemos pedir de um RPG com inspiração nos clássicos e que ao mesmo tempo traz uma personalidade tão latino-americana?

Para um primeiro jogo da Dreams Uncorporated, acho o jogo sensacional. Parece até que recentemente tenho investido em indies da América do Sul (vide Blue Fire!). Existe potencial para aperfeiçoar essa mecânica de ver realidades em outros tempos.

Por enquanto, apesar de não ser bem o jogo que vi nos trailers, Cris Tales é uma jornada assustadoramente bela – pois em 20 e poucas horas combina referências clássicas com inovação. Para mim, o preço ideal rondaria abaixo dos R$ 100 e não vi ainda muita motivação para jogar novamente e ver outros desfechos.

Ainda assim, não deixe que tempos prolongados de carregamento, assistência excessiva e missões “ponto A, ponto B” ofusquem uma aventura relativamente curta para um RPG, porém muito entretida e com um combate interessantíssimo.

Torcendo para o próximo projeto do time focar em elementos realmente importantes, como a batalha, que está no caminho certo pra quem gosta de RPG e de estratégia.

*Review elaborada em Nintendo Switch com código fornecido pela Modus Games.

Cris Tales

R$ 149,99
7.9

Diversão

8.2/10

Visuais e som

8.5/10

Jogabilidade

7.0/10

Conteúdo

8.0/10

Prós

  • Belas animações
  • Mecânica temporal funciona bem nas batalhas
  • Múltiplos futuros dependem de suas escolhas
  • RPG simples e acessível
  • Referências a clássicos do gênero

Contras

  • Lento, muito lento - desde animações até ritmo geral
  • Fora do combate, Cris Bell não desafia jogadores
  • 25 horas de duração pode apelar a novatos, mas não a veterandos do gênero
  • Custo-benefício no Switch - espere preço abaixo dos três dígitos

Carlos Maestre

Jornalista que passou a pesquisar acessibilidade digital pela constante necessidade de inverter o eixo Y - desde GoldenEye 007. Cresceu com a Nintendo e fã da (atual) Microsoft, quer a velha Rare de volta. Além de achar divertido caçar conquistas, sofrerá uma intervenção a qualquer instante por culpa de Stardew Valley.