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Até que ponto vale o entretenimento? Assédio e abusos no mundo gamer

Quando se fala de jogos, geralmente estamos acostumados citar diferentes gêneros de jogo, consoles, campeonatos e coisas afins. No entanto, há uma enormidade de coisas por trás de nossa jogatina. Muita coisa ruim, diga-se de passagem, que muitas vezes ou não sabemos, por conta de contratos de confidencialidade e silenciamentos, ou simplesmente por alguns gamers simplesmente ignorarem, o que não é uma boa opção, visto que há um grande número de trabalhadores por trás de uma das indústrias mais rentáveis do entretenimento. Só para vocês terem uma dimensão da coisa, neste ano, os lucros do mercado de games deve chegar a US$ 146 bilhões, batendo serviços de streaming e indústria esportiva.

Ou seja, onde há tanto dinheiro, há trabalho. E onde há trabalho, é muito possível que existam problemas de abusos e excessos. E diferentemente do que muita gente pensa, o mercado dos games está longe de ser esse glamour todo que pintam. Diariamente, notícias ou vazamentos de denúncias de assédio e de “crunch” são veiculadas na imprensa especializada, chocando a alguns gamers e a outros… nem tanto. Portanto, este será o assunto abordado aqui, onde buscaremos resumidamente responder à grande questão: Até que ponto vale o entretenimento?

overwatch
O mundo de Overwatch entrou em crise com as denúncias envolvendo Jesse McCree, funcionário que dá nome ao personagem. (Imagem: Divulgação)

Assédio e crunch: o que são?

Antes de dar prosseguimento ao texto, acho justo explicar e exemplificar essas duas categorias problemáticas que estão cada vez mais expostas no mundo dos jogos eletrônicos.

O assédio pode acontecer de diversas maneiras, mas citarei aqui as mais conhecidas. O assédio sexual, pelo qual o agressor traz constrangimento a alguém com a finalidade de obter favorecimento ou alguma vantagem sexual. Esse caso aconteceu recentemente na Blizzard, onde o personagem McCree, que terá seu nome e arco de história modificados após denúncias de assédio contra Jesse McCree, ex-designer de jogos da empresa homenageado pela equipe de Overwatch. Após o ocorrido, McCree foi demitido e a Blizzard soltou uma nota sobre a situação que, sinceramente, deixou a desejar, ainda mais por estar envolta em outras denúncias de assédio sexual de forma física e verbal, além das acusações de discriminação salarial e desigualdade nas oportunidades baseada em gênero.

Outro tipo de assédio é o moral. Ele ocorre com a exposição de uma pessoa ou grupo a situações de humilhação, constrangimento e perseguição de forma contínua e prolongada. Essas situações, quando ocorrem, têm a participação de uma hierarquia extremamente autoritária. Esse é um dos tipos mais comuns de se ocorrer, englobando práticas antiéticas e desumanas de abuso de poder.

Há também o assédio psicológico, que é uma violência emocional. Esse tipo de assédio ocorre no ambiente de trabalho, por meio de condutas abusivas, repetição de práticas contra a dignidade ou integridade psíquica e ameaça de perda do emprego pelo não cumprimento de tarefas.

Cyberpunk 2077
Cyberpunk 2077 foi um dos vários jogos que tiveram casos de crunch. (Imagem: Divulgação)

Todos esses tipos de assédio podem estar englobados, de menor ou maior forma, no que a indústria chama de “crunch”. Em tradução literal, “crunch” significa “triturar”, o que já nos leva a entender que não é coisa boa. Essa prática infelizmente é muito comum no mundo dos jogos, onde os prazos vão se encerrando, aproximando-se a data de lançamento e… o título ainda não está pronto. O caso mais comum e mais noticiado certamente foi o de Cyberpunk 2077, tido como um dos mais problemáticos jogos dos últimos tempos. Na ocasião, a CD Projekt RED foi acusada de obrigar seus funcionários a ultrapassarem as 48 horas de trabalho semanais para que o jogo fosse lançado sem problemas.

Como sabemos, Cyberpunk 2077 foi lançado após diversos atrasos e, ainda assim chegou recheado de problemas. Mesmo com a fantástica participação de Keanu Reeves, o jogo não foi salvo a tempo do lançamento, batendo recordes de pedidos de reembolso e sendo removido da PlayStation Store. Abaixo, deixo os tweets feitos (em inglês) por Jason Schreier, jornalista conhecido por trazer à tona esse tipo de denúncia nos últimos anos, abordando uma das denúncias feitas no Reddit.

Por qual motivo falar disso?

Muitos de vocês devem estar se perguntando: “Mas por qual motivo você está falando disso?”. E eu explico: esses tipos de assédios e crunch são extremamente sintomáticos da sociedade capitalista atual, e causam danos irreversíveis na saúde e vida dos profissionais envolvidos. No livro Marx no fliperama: videogames e luta de classes, de Jamie Woodcock, o autor aprofunda alguns relatos e mostra casos em que a vida pessoal de diversos funcionários da indústria dos jogos foi duramente afetada por longas jornadas de trabalho que ultrapassavam 100 horas semanais. Portanto, a pergunta que dá título ao texto deve ser refletida aqui: Até que ponto vale o entretenimento?

Embora todos nós aqui tenhamos uma verdadeira paixão pelo mundo dos jogos, devemos pensar também nas pessoas envolvidas no processo de produção, criação, marketing e todas as áreas próximas, abandonando essa falsa glamorização do meio e mostrando que eles englobam uma variedade de problemas graves. Devemos ser simpáticos aos funcionários envolvidos, e não às empresas desenvolvedoras. Respondendo a pergunta central do texto, o entretenimento vale até o ponto em que é feito de forma sadia e justa com os funcionários e os jogadores, sem falcatruas, sistemas tacanhos de loot box e outras formas de se explorar um público cada vez mais jovem e, infelizmente, despolitizado.

Passando dessas condições, torna-se complicado. É claro, nós jogamos diariamente jogos de empresas que fazem esse tipo de coisa, mas o que eu penso ser relevante é a compreensão por parte do jogador sobre o que está acontecendo. Esse é o aspecto chave: não se alienar às condições alheias. Pressionar essas companhias para que tais problemas sejam duramente coibidos é o mínimo a se esperar de todos nós. É uma questão de empatia e até mesmo de noção de classe. Afinal de contas, boa parte de nós também trabalha e sabe que nem sempre é fácil.

Mas há alguma forma de que tais problemas sejam reduzidos na indústria dos games? Sim, mas não são fáceis. Jamie Woodcock e diversos outros jornalistas e estudiosos mostram que o crescimento de sindicatos como o Gamers Work Unite podem ser um caminho para a reivindicação de direitos e seguridade para esses funcionários. Há também um caminho inverso, mas muito mais improvável de acontecer.

É o caso de empresas como a Respawn, responsável pelo game Apex Legends, que mostra por qual motivo o jogo é sazonal, respeitando o ritmo dos trabalhadores envolvidos e, consequentemente, criando conteúdos de melhor qualidade. Segundo Vince Zampella, CEO da empresa, “não queremos sobrecarregar a equipe e diminuir a qualidade dos ativos que estamos lançando”. Ou seja, há uma preocupação com a qualidade de vida de cada um dos funcionários, algo que acaba comprometido por longas jornadas de crunch.

Apex Legends
A Respawn evita ao máximo a tática do crunch. E bem, não faz mais que a obrigação… (Imagem: Divulgação)

Desta forma, é possível mesclar sim jogos AAA com campanhas de desenvolvimento justas e equilibradas, sem o abuso da mão-de-obra de diversos funcionários em áreas que vão além da produção, mas passam pelo marketing e até mesmo storytelling. O entretenimento é essencial, e isso ficou extremamente evidente durante a pandemia da COVID-19, mas ele deve ser feito de forma justa com todos os envolvidos na cadeia produtiva. Caso contrário, se torna mais um de tantos casos de exploração na sociedade atual que, indiretamente, fazemos parte e poucas vezes percebemos. Por fim, precisamos sempre ser críticos ao que consumimos – e isso não significa abandonar o gosto por games, mas engrossar o caldo contra tais abusos.

E lembre-se: sempre que um jogo atrasar, não se frustre. Afinal de contas, essa pode ser a melhor opção para os trabalhadores envolvidos e, consequentemente, para nós, jogadores, que infelizmente acabamos por consumir muitos jogos quebrados no lançamento, uma prática desleal cada vez mais comum na indústria.

Álvaro Saluan

Historiador e cientista social de formação, é completamente apaixonado por videogames e escreve sobre o tema há uns bons anos. Vê os jogos para além do entretenimento, considerando todo o processo como uma grande e diversificada arte.