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Mulheres e videogames: desenvolvimento e representações

Falar de jogos eletrônicos sempre foi parte do meu cotidiano. No entanto, no final de 2020, levei esse desejo mais a sério e elaborei um Trabalho de Conclusão de Curso em Ciências Sociais intitulado Representações femininas nos jogos eletrônicos: uma análise entre 1990-2020. Este trabalho, embora ainda muito inicial, veio de um desejo particular de tentar entender os motivos pelos quais os jogos sempre trataram as mulheres a partir de uma perspectiva ainda muito vertical, tanto na elaboração de personagens, quanto no espaço de trabalho – algo que reflete diretamente na questão das formas de representação.

Mas muitos devem se indagar por qual motivo um homem está abordando esse assunto. Pois bem, desde a minha adolescência, sempre percebi essas representações como problemáticas, por vezes até hiperssexualizadas. Desta forma, ao longo de minha graduação em Ciências Sociais, comecei a fazer um levantamento bibliográfico sobre jogos a partir de uma perspectiva sociológica. Contudo, poucos acadêmicos da área abordavam os jogos, algo que me levou a considerar essa pesquisa, pensando sempre a partir de uma análise teórica e baseada em dados. Neste artigo, mostro alguns dados que me ajudaram a compreender melhor a mulher no cenário dos jogos enquanto personagens e força de trabalho envolvida no processo de criação.

Horizon Forbidden West
Aloy, protagonista de Horizon Forbidden West e Horizon Zero Dawn (Imagem: Divulgação)

O mercado de jogos

Os jogos eletrônicos são cada vez mais comuns no cotidiano de pessoas no Brasil e no mundo. Ainda que os consoles mais atuais sejam vendidos nacionalmente por valores próximos a R$ 4.500,00 reais, algo que afasta considerável parte do público. Porém, ainda existem os consoles da geração anterior, que são mais baratos, mas ainda caros para o trabalhador médio, pois esses modelos chegam a custar quase dois salários mínimos. Ou seja, por volta de R$ 2400,00 reais. Além disso, não podemos esquecer dos PCs e dispositivos móveis, que variam de preço e desempenho, mas que proporcionam aos jogadores uma oportunidade – mesmo que limitada – de poder jogar.

A indústria dos videogames, de tempos em tempos (em média 6 a 7 anos), lança uma nova geração de consoles, equipados com hardware mais moderno, que influi diretamente em questões como qualidade gráfica, sonora, desempenho e imersão. Além disso, novos novos gadgets também são lançados, sendo mais uma forma de obrigar o público a adquirir um novo novo produto para usufruir a melhor experiência possível. Todavia, vale ressaltar que o salto da geração atual ainda é muito gradativo, com diversos jogos sendo lançados simultaneamente para a geração passada e a anterior, mas com desempenhos distintos.

Para se ter uma dimensão deste mercado, a Valor Investe divulgou no dia 30 de julho de 2019 que o Brasil é o 13º maior mercado de games do mundo e o maior da América Latina, dado que se sustentou durante 2020. A pesquisa aponta também que existem cerca de 75,7 milhões de jogadores no país, sendo que desse total, 83% comprou algum item virtual nos jogos nos seis meses antecedentes à pesquisa. O consumo desse tipo de material adquirido in game, seja por meio de produtos já definidos ou pelas chamadas loot boxes é uma fatia considerável dos lucros do mercado gamer.

Mais do que isso, os jogos são atualmente a produção mais rentável no mundo do entretenimento. Em 2020, ao longo da pandemia, o acesso aos jogos eletrônicos explodiu de tal forma que uma pesquisa da Newzoo estima que os lucros em todas as plataformas (PC, consoles e dispositivos móveis) cheguem a incríveis US$ 159,1 bilhões (R$ 851 bilhões). Quando os lucros são estendidos até 2023, a pesquisa prevê lucros com margem de até US$ 200 bilhões (R$ 1,7 trilhão).

Mesmo que os números tenham subido exponencialmente graças ao período da pandemia, sobretudo ao se comparar com o cenário de 2019, onde chegou ao US$ 120,1 bilhões, é possível crer que o crescimento nesse mercado seguirá. O gráfico abaixo (Gráfico 1), elaborado por um levantamento da Ubisoft, empresa desenvolvedora da franquia Assassin’s Creed e vários outros títulos, mostra que, em 2018, os jogos renderam mais que diversas outras áreas do entretenimento como cinema, livros, música ao vivo e gravada, vídeo on-demand (Netflix, Prime Video) e em mídia física.

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Gráfico 1: A indústria dos videogames é a mais rentável no entretenimento (revendas mundiais em euros). Dados baseados em diversas pesquisas (Goldman Sachs, App Annie, Mc Kinsey, NPD, GfK, PwC) divulgado pela Ubisoft.

Desta forma, da perspectiva da indústria de entretenimento e do capitalismo, isso significa um considerável êxito do mercado de games, sobretudo por manter uma margem cada vez maior nos lucros das empresas envolvidas. Isso pode ser explicado por diversos aspectos, enfatizando-se a mudança de geração ocorrida com a chegada do PS5 e do Xbox Series X, com tecnologias ainda mais potentes que culminam em um maior nível de detalhamento, qualidade e até mesmo em novas possibilidades de interação, sendo este o grande diferencial dos videogames ante o resto das outras produções do entretenimento.

Ao longo do desenvolvimento tecnológico, os videogames também evoluíram no quesito gráfico, qualidade sonora e no que é mais relevante ressaltar nesta análise: a qualidade técnica das narrativas, algo que impacta diretamente no processo de criação das personagens que compõem os jogos. Isso ocorre pois, com tais aprimoramentos, é possível aumentar a imersão das histórias, inclusive a partir da captação de expressões e movimentação de atores e atrizes, que aproximam cada vez mais o cinema dos jogos.

Graças a esse e a vários outros aspectos como o aumento da faixa etária dos jogadores, que, no Brasil, se concentra majoritariamente entre adultos de 25 a 34 anos, os storytellers podem trabalhar de forma mais amadurecida em suas narrativas, algo nítido se compararmos com as abordagens adotadas entre os títulos feitos nos anos 1990 e nos anos 2020.

A partir destes dados, é perceptível a influência econômica da indústria gamer no mundo capitalista pós anos 1980. A ideia deste artigo consiste em trazer dados disponíveis sobre a presença feminina em diferentes âmbitos deste universo. A partir deste caminho indicado, a proposta se constrói através da produção de dados que evidenciem personagens femininas de games desde a década de 1990 até os dias atuais.

Mulheres nos games: o que os dados revelam?

Antes de iniciarmos essa parte, vale ressaltar que as pesquisas quantitativas encontradas não abordam os anos 1990, sendo todas elas feitas apenas a partir dos anos 2000. Assim, com base nesses dados mais atuais, o público consumidor feminino cresceu exponencialmente e, no Brasil já é considerado maioria, representando cerca de 53,8% do mercado nacional. Já nos EUA, o maior mercado mundial dos jogos, o número de mulheres nos jogos é de 41%, segundo pesquisa presente no Statista, que faz um levantamento do público entre 2006 a 2020:

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Gráfico 2: Distribuição de jogadores de PCs e consoles nos Estados Unidos de 2006 a 2020, por gênero. Christina Gough. Statista.

Porém, ainda que a parcela de mulheres seja significativa e, ao longo dos anos tenha oscilado entre 38% a 48%, chegando a 45% em 2021, a presença de protagonistas femininas em jogos é ainda pequena, como mostra o gráfico abaixo onde é possível de se perceber os protagonistas de videogame pelos gêneros, em uma pesquisa feita pela Feminist Frequency:

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Gráfico 3: Protagonistas de videogame por gênero (2015 a 2020). Feminist Frequency.

Os dados acima referem-se a jogos apresentados em eventos virtuais feitos por grandes estúdios e editoras, que ocorreram entre 11 de junho de 2020 a 10 de setembro do mesmo ano. Especificamente, foram analisados dois eventos da Sony, dois eventos da Ubisoft, um da Electronic Arts e outro da Microsoft. Essas são algumas das principais companhias do mercado, que reúnem diversos estúdios de desenvolvimento. Assim, é possível perceber que em 2020, o número de personagens femininas mais que dobrou, passando dos 5% de 2019, para os 18% de 2020 – apenas 5% a menos do que as representações masculinas. Nos anos anteriores, é possível analisar pelo menos três vezes mais homens do que mulheres como protagonistas. 

Uma das razões possíveis para se questionar se essa mudança representa ou não uma algo generalizado inclui o fato de que mais de um terço dos jogos com personagens femininos vieram de apenas um único evento: o The Future of Gaming, apresentação da Sony feita em 11 de junho de 2020. Este evento foi focado especificamente nos jogos de PlayStation 5. Assim, caso isso seja um reflexo de uma estratégia da empresa, as repercussões nos próximos anos podem ser muito significativas para o público alvo. Ainda assim, mesmo com os dados apresentados e o aumento das mulheres nos jogos, o ambiente ainda é fortemente marcado pela presença masculina.

Isso fica claramente expresso ao observarmos em números como é a participação feminina no ambiente de desenvolvimento de jogos. Segundo Christina Gough, pesquisadora focada em videogames e eSports, analisa entre 2014 a 2019 a distribuição de desenvolvedores de games a nível mundial, por gênero, por meio de um formulário aplicado via internet.

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Gráfico 4: Distribuição de desenvolvedores de jogos em todo o mundo de 2014 a 2021, por gênero. Christina Gough. Statista.

A partir do gráfico 4, é possível de se perceber quão massiva é a presença masculina no desenvolvimento de jogos, mantendo certa estabilidade desde 2014. Mesmo com o acréscimo de 9% no número de mulheres envolvidas entre 2017 e 2021 (não constando na pesquisa os anos de 2018 e 2020).

Conclusão

Com base nos dados levantados, podemos afirmar que o número de jogadoras é crescente e relevante, merecendo assim ser destacado e estudado de forma mais aprofundada. No entanto, é nítida a discrepância na participação feminina na parte de desenvolvimento dos jogos. Desta forma, podemos afirmar que para que o cenário mais representações realistas e relevantes de personagens femininas, indo além dos estereótipos e da hiperssexualização tão comuns da indústria, a presença de mulheres no processo de desenvolvimento torna-se fundamental para a transformação deste cenário.

Contudo, antes que interpretem de forma errônea, vale ressaltar que isso não significa que homens sejam incapazes de produzir boas personagens. Ao contrário, o que tratamos aqui é de compreender que dar o devido espaço e voz às mulheres possibilita colocar questões que, embora possamos compreender de alguma forma através da empatia, jamais serão sentidas por nós na pele. Assim, a presença feminina é essencial para trazer ainda mais reflexões aos jogadores e jogadoras, elevando o nível dos jogos e personagens para além do contexto de diversão, mas também de aprendizado, exercício de criatividade e reflexão do próprio contexto no qual a humanidade se insere. Afinal de contas, os jogos servem pra isso.

Por fim, através deste levantamento foi possível ver que o número de personagens femininas também teve um aumento nos últimos anos. Todavia, está ainda bem distante da superioridade numérica masculina e, além disso, persiste a questão da falta de elaboração na representação das personagens, que ainda são analisadas em diversos jogos reproduzindo uma série estereótipos ligados ao gênero. Ou seja, ainda que tenhamos algum crescimento na representatividade, ainda precisamos melhorar muito para atingirmos um cenário justo e igual neste mercado, que reflete boa parte da desigualdade das relações sociais, econômicas e culturais no mundo atual.

Álvaro Saluan

Historiador e cientista social de formação, é completamente apaixonado por videogames e escreve sobre o tema há uns bons anos. Vê os jogos para além do entretenimento, considerando todo o processo como uma grande e diversificada arte.