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Quando gênero, aparência e outros pontos “importam” mais do que a história

Nos últimos tempos, confesso evitar ao máximo dar opiniões sobre qualquer coisa. Tudo anda extremamente cansativo, e a pandemia ajuda bastante neste processo. Os jogos e várias outras representações artísticas servem como um grande refúgio da dura realidade na qual estamos inseridos. Porém, até para essas questões artísticas que poderíamos considerar como mais banais, as coisas parecem estar cada vez mais complicadas. Em meio a tantas questões realmente sérias e que afetam diretamente as nossas vidas, alguns ainda insistem em implicar com a forma com a qual as desenvolvedoras decidem criar seus personagens.

Sim, parece uma loucura toda essa implicância e até mesmo uma certa ânsia por “realismo” (?) em meio a um mundo completamente fictício, mas comentários extremamente desagradáveis e “opiniões” totalmente deturpadas e até mesmo preconceituosas surgem para tentar explicar o ainda acanhado movimento de representatividade no mundo dos games. Jogos como The Last of Us Part II e até mesmo o reboot da franquia Tomb Raider são bons exemplos para iniciar o debate.

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Mulher forte não existe, eles dizem… (Imagem: Divulgação)

O primeiro certamente foi o campeão de críticas infundadas e, me desculpe a sinceridade, imaturas. Sim, perceber que mulheres como Ellie e Abby podem ser muito mais do que princesinhas trancafiadas em um castelo parece ser uma grande afronta à masculinidade de alguns rapazes que mal conseguem sustentar um argumento fora da internet, território dominado por “machos alfas virtuais” e afins. Pseudocríticas como “lacração” ou até mesmo a politização no mundo dos jogos são constantes. Pior ainda é ler que tais possibilidades são impossíveis, estando muitos desses grupos presos à falsa ideia de mulher enquanto gênero frágil e de jogos como um campo neutro.

Ora, antes de mais nada, qualquer produção que seja, jogos, livros, filmes e séries tem um mínimo de politização. Digo isto pois é impossível criar algo totalmente neutro. Afinal de contas, tal como qualquer arte, os jogos também, após estarem nas mãos do público, contam com uma polissemia de sentidos para cada indivíduo. Ou seja, mesmo que indiretamente, há algum sentido político nessas representações, QUER VOCÊ QUEIRA OU NÃO.

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A nova Lara Croft também foi criticada por “estar muito diferente”. (Imagem: Divulgação)

Este assunto inclusive foi parcialmente estudado por mim no meu trabalho de conclusão de curso em Ciências Sociais, que analisa de uma forma geral as representações femininas dentro dos games, observando clichês, hipersexualização e até mesmo como as mulheres ainda estão muito pouco inseridas neste meio, sendo a maior parte delas representadas a partir da perspectiva masculina. Enquanto isso, o público feminino cresce exponencialmente no consumo de jogos eletrônicos, chegando em algumas pesquisas a ultrapassar ou a ficar bem aproximadas do número de jogadores do sexo masculino. Mas este pode ser um assunto aprofundado em outra hora.

Expandindo a discussão, o que me levou a escrever este humilde artigo, longe de qualquer pretensão acadêmica, foram os últimos acontecimentos envolvendo as escolhas artísticas na representação de alguns personagens de God of War: Ragnarok. As reclamações da vez se dirigem a dois personagens e suas representações “não-ortodoxas” (leia-se, fora do padrãozinho estabelecido). São eles: o famigerado Thor e Angrboda. O primeiro, bem longe do visual do personagem da Marvel, é apresentado como um personagem acima do peso. Já Angrboda, é uma mulher negra. Ou seja, deram aí o prato cheio para enlouquecer qualquer nerdola.

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Thor está bem diferente do padrão Marvel. E isso importa? (Imagem: Divulgação)

Ao criticarem o personagem Thor, acham um grande absurdo o deus do trovão estar acima do peso e com uma aparência diferente da observada em alguma estátua no jogo anterior o God of War de 2018. Convenhamos que é um argumento pífio. Afinal de contas, uma estátua não necessariamente representa um personagem, mas talvez a ideia de como ele gostaria de ser. Se esse argumento não servir, tenho até um outro melhor: Thor NÃO existe. Pois é, ele é um personagem mitológico, e só isso. A escolha de representá-lo desta forma é artística e nos diz mais dos dias de hoje do que qualquer outra coisa. Portanto, pare com esse choro de “rigor histórico”.

No caso da personagem Angrboda, a coisa foi mais além. Os “doutores em cultura nórdica” alegaram que nesta interessante mitologia não existiram personagens negros. Não preciso lembrar novamente que estamos falando de algo inexistente e de escolhas artísticas, não é mesmo? Portanto, sugiro que parem de caçar pelo em ovo. Pois se você for exigir mais rigor histórico nos jogos, lamento em te informar, mas boa parte do que você viu em Assassin’s Creed não aconteceu. Ou seja, essa implicância é nitidamente pelo fato de uma personagem negra estar sendo representada. Isso incomoda, assim como personagens lésbicas, gays, bissexuais, negros e por aí vai. Ver uma minoria tendo espaço dói em uma parte deste público – e nós sabemos disso.

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Os jogadores se esquecem que o jogo é uma interpretação artística, e não um trabalho de história. (Imagem: Divulgação)

Em um mundo ideal, a arte não teria este tipo de crítica, tampouco esse falso “rigor histórico”. Contudo, sabemos que as coisas não são bem assim. O mundo dos games ainda é muito tóxico e boa parte da comunidade acha ter um domínio que não existe. Nesta confusão, a cada personagem destoante de seus clichês, os jogos acabam ganhando ainda mais palco, algo que provavelmente também inspira aos criadores a colocarem personagens fora dos estereótipos, nos fazendo pensar que essas vias de representação também são uma forma de propaganda. Mas entre ter ou não ter, sinceramente prefiro que tenham cada vez mais personagens fora dos estereótipos vigentes.

Peço perdão pelas tantas aspas, mas creio que elas são essenciais para delimitar falsas ideias criadas por jogadores extremamente puristas e mimados, que se incomodam em ver seu refúgio solitário – os mundo jogos – ser penetrado por tantas outras pessoas. Quanto a isso, o único conselho que posso dar é: “aceita que dói menos”, pois as empresas querem mais que os jogos sejam citados por tais motivos. The Last of Us Part II que o diga… em meio a tantas cenas e polêmicas, foi o jogo mais premiado de todos os tempos, além de vender milhões de cópias no mundo todo.

Por fim, embora eu ainda pudesse falar muito mais sobre o assunto, deixo aqui a tradução de um tweet feito pelo próprio diretor criativo de God of War: Ragnarök, Matt Sophos, respondendo a algumas dessas críticas:

“Não é preciso para a mitologia nórdica / não respeitar a cultura.”
Oh garoto. O grande. Deixe-me começar com isto:
God of War é a nossa interpretação da mitologia, não da história – nórdica ou grega. Contamos uma história pessoal com o pano de fundo de deuses, gigantes, etc. através de nossas lentes.

Matt Sophos, diretor criativo de God of War: Ragnarok.

Álvaro Saluan

Historiador e cientista social de formação, é completamente apaixonado por videogames e escreve sobre o tema há uns bons anos. Vê os jogos para além do entretenimento, considerando todo o processo como uma grande e diversificada arte.