The Longing | Review
The Longing é um jogo independente que se passa em tempo real e coloca o jogador no papel do último servo de um rei enfraquecido. O monarca dormirá por 400 dias para recuperar suas forças. São dias de verdade, do mundo real, somando 24 horas.
Quatrocentos dias com o objetivo de descobrir a melhor maneira de se passar o tempo, nada mais, que se transformam em um exercício filosófico. Essa é a proposta da desenvolvedora alemã Studio Seufz e publicada por Application Systems Heidelberg (também conhecida como ASH) para Nintendo Switch recentemente. Descubra se há mais coisas do que sugere nossa vã filosofia entre The Longing e seu valioso tempo com esta análise para o Pizza Fria!
The Longing: a história e contemplação
“Me chame de Sombra. Uns 400 dias atrás – não se preocupe em saber quantos ao certo – o rei precisava recuperar suas forças e, para isso, entrou em um sono profundo.” Não seria nenhum absurdo se The Longing (“O anseio”, em português) começasse parafraseando Moby Dick.
Desenvolvido pelo Studio Seufz, o jogo guarda semelhanças com o livro de Herman Melville: além de explorar sentimentos como a solidão e uma espera angustiante, ambos parecem compartilhar uma primeira impressão incompreensível e negativa do público.
Tudo começa com uma breve introdução: nas profundezas da Terra está o reino de um antigo rei cujas forças se esvaíram. Tudo que lhe resta é um servo fiel, a Sombra, que recebe a missão de esperar durante os 400 dias de descanso do monarca. Antes de cair em letargia, o rei adverte a Sombra para nunca deixar as cavernas, podendo aproveitar a passagem do tempo como melhor entender.
Protocolar e enganosamente encaixado no gênero “jogo ocioso”, a Sombra e os eventos em The Longing continuam existindo e ocorrendo mesmo com o console desligado. Trata-se de um simulador de andar misturado exploração, puzzle e até mesmo construção.
Tedioso? Depende de você. Subversivo? Com certeza!
Vamos arrancar o curativo de uma vez: The Longing não é um jogo para todos. É experimental, surreal, foi feito deliberadamente lento (podendo ser tedioso), requer paciência (tanto com os passinhos curtos do protagonista quanto com a exploração das labirínticas cavernas) e, finalmente, dura 400 dias de verdade.
Todas essas características nos fariam pensar que um jogo assim seria um desastre. Mas é justamente a subversão ao meio que me intrigou. A incompreensão citada acima é natural, pois The Longing funciona como uma espécie de antijogo – sua filosofia representa o inverso daquilo que estamos acostumados a ver em um jogo eletrônico.
A primeira impressão ao pegar o controle e jogar por uma hora era de que The Longing parecia ser um erro grosseiro de projeto, parecia carecer de bom game design… mas é preciso ter em mente que a proposta é disfrutar do título em curtas sessões diárias e calmamente, algo que nós jogadores inadvertidamente desconsideramos.
Alto lá! Não é a passagem do tempo em si, é sobre como a percebemos
Esperar 400 dias é apenas uma das formas de fechar o jogo, que contém cinco finais diferentes e relativiza a passagem do tempo. Afinal, tempo é o tema central de The Longing, cuja abordagem estaria ameaçada não fossem os jogos independentes.
Podemos dizer que o tempo voa quando nos divertimos, não é mesmo? Pois saiba que a descoberta e a transformação do “lar” da Sombra em um lugar mais confortável fazem o tempo voar, fazendo com que cada volta ao jogo tenha avançado minutos adicionais, até mesmo horas.
Um exemplo: desenhar subtrai minutos, assim como ler. A leitura, aliás, é a principal pista de que The Longing tem um propósito contemplativo não obrigatoriamente atrelado à diversão convencional de um jogo eletrônico.
De cara, alguns livros já estão na estante no quartinho da Sombra. O primeiro é um bloquinho de anotações chamado Pensamentos. Eles contêm dicas da jornada e darão pistas ao jogador, assim como os sonhos ou os diálogos da sombra.
O ponto alto de verdade da estante são as obras clássicas e de domínio público, como Moby Dick (da paráfrase no início desta análise), O Conde de Monte Cristo e tantas outras espalhadas pelas cavernas e corredores, esperando para serem encontradas. O texto de todas está completinho dentro do jogo.
Você pode permitir que a Sombra continue a ler um livro mesmo quando estiver com o jogo fechado, que por sua vez marca automaticamente a última página lida.
Seria insensato acreditar que as pessoas pararão para ler esses livros no meio de uma sessão de The Longing. Não se trata de um substituto para impressos ou Kindle. Os livros estão lá apenas pela mera reflexão sobre como aproveitamos o tempo e para enfatizar as referências e a bagagem dos criadores do jogo. As obras podem relembrar quem já tenha lido ou para estimular a descoberta de um livro clássico.
Há livros lá que estão no meu “backlog” literário e tenho a plena consciência que alguns nunca vão sair dessa condição. Mas, para mim, uma pequena diversão em The Longing foi fazer como aquela brincadeira de redes sociais de pegar uma página ao acaso e lê-la. A partir daí, The Longing começou a virar um monstro de personalidade própria; uma personalidade introvertida, porém gigantesca.
Ainda sobre os livros, se a presença Assim Falou Zaratustra, do filósofo Friedrich Nietzsche, na estante não esclarece a mensagem do Studio Seufz, te faz pensar a respeito. Sem spoilers (tentei manter as imagens ilustrativas dentro do começo), a contraposição de temas do livro com o jogo – como a liberdade do homem, a busca pelo significado da vida terrena, entre outros – fazem The Longing flertar com o status de jogos como forma de arte.
Agora, escapando de livros e ainda sobre o caráter abstrato do título: em certo momento nos deparamos com um outro personagem, a escuridão personificada com o nome de Angst. Seria simples se fosse só isso: A escuridão em si é tranquila, serena, não te faz mal. Mas a Sombra será levada de volta a seu quarto, acordando assustada e trêmula.
A ironia é que, se Angst lembra angústia em português, não é por nada: em alemão, dinamarquês, norueguês e holandês, Angst é uma palavra para medo e ansiedade. Ao pesarmos nosso tempo finito e a marca que deixamos, dificilmente teremos uma ilustração melhor.
Dado que estamos em uma análise e não em um fórum de discussão, vamos deixar que há muito mais em The Longing que os passos lentos e os olhos cansados da Sombra.
E assim, sem objetivos claros, devemos descobrir como passar o tempo ao vagar por aí. Não só livros, mas objetos (carvão, madeira, pedaços de instrumentos musicais) estão por todos os lugares. Eventualmente, construa uma cama e a Sombra começará a ter sonhos quando a mandar dormir. Quase uma premonição, estes sonhos deixam dicas do que podemos fazer ou onde devemos explorar.
Tamanha clarividência só é parada pelos obstáculos naturais impostos pelos criadores (do jogo, não do mundo): atrás de cada porta sempre há um obstáculo de tempo. Um bom exemplo é o vão mortal e intransponível entre duas plataformas. Devemos esperar duas semanas, um mês ou o tempo sugerido pela Sombra para que o buraco se encha de água e possamos atravessá-lo a nado.
Nesta jornada sem direção, encontre cristais para decifrar, carvão, encontre pinturas e desenhe… Tenha os itens a mão e o servo fiel fará a sugestão de um objeto a ser construído. Tal objeto certamente ajudará a acelerar a passagem do tempo.
Então por que tantas pessoas acharam The Longing entediante? O jogo certamente não é para todos e… tal como na vida, sem direcionamento, tudo fica mais complicado. A desmotivação é fácil de entender, pois o conceito não é, como disse, de um jogo convencional.
O curioso é que a falta de propósito não só desencoraja como também retrata a Sombra em um processo depressivo. Caso você tenha assistido o filme Soul (2020), seria algo similar ao momento que o saxofonista Joe transita com a alma 22 pelo resumo de sua vida. Claro que o filme da Pixar faz uma apresentação mais “benevolente”.
E o que seria de um jogo sem conflito? O conflito nele é justamente combater esse tédio. Paradoxalmente, o jogo não quer te sugar por horas a fio e, às vezes, quase te expulsa. A caminhada é vagarosa e não existe um botão de correr. Não vi durante minha jogatina e não acho que exista um mecanismo escondido por aí. Andar pelos retilíneos Saguões da Eternidade na mesma direção é de um aborrecimento sem fim.
O tempo é tudo em The Longing: é seu aliado, seu inimigo; sua “ferramenta” para atingir o objetivo, seu inimigo caso não seja dominado. Como a Sombra, você pode deixar o acaso ao volante da vida ou cometer suicídio a qualquer momento; ou pode tentar encontrar algo que te ajude a suportar a espera.
De visuais e trilha sonora
A lenta exploração da caverna é bela graças aos visuais desenhados à mão. Nem todas as salas são cavernas e ainda assim são belas, com vitrais e mármore e até mesmo partes na superfície colorida. O Studio Seufz (site oficial) é desenvolvedor de The Longing e também trabalha com animações para filmes. Dois outros jogos deles partilham algo dessa identidade visual (Murder e Lucky Tower).
De alguma forma, a construção ao passar por toda porta ou por corredores é de estarmos em um labirinto.
Para combater este efeito, a Sombra pode se lembrar de localizações (você escolhe quais cenários guardar na memória) e com uma simples seleção o jogador pode colocá-la em piloto automático.
O som também repassa a sensação labiríntica e lenta do jogo com suas notas sintetizadas e pesadas. Os passos ritmados entram em harmonia constante com o barulho de goteiras e outros elementos ambientais.
Vale a pena jogar The Longing?
Sim, não? The Longing não é um jogo tradicional nem tampouco é um jogo arte como Manifold Garden (minha análise está no Pizza Fria!), que consegue manter o engajamento psicodélico com certa facilidade.
Se você gosta de semiótica, filosofia e está disposto a jogar em doses homeopáticas, então talvez The Longing seja uma excelente pedida. Eventualmente verá que a coroa do rei é mais do que a coroa do rei: suas pontas sustentam o mundo acima e o que será dele depende do final que vai se esboçando. Cinco ou mais finais escondem montes de segredos e parcimônia dita a experiência.
Realmente não há nada de divertido em tentar desbravar The Longing em longas sessões de jogatina. Mesmo quando breve, o tempo com o jogo pode ser impiedosamente entediante. Vai depender do dia, da progressão feita, da vontade…
The Longing exige tempo (!) fora do jogo para que o jogador possa digerir seu subtexto, as entrelinhas. É uma dessas experiências que todos deveriam dar uma oportunidade, mas que precisa ser vendida por aquilo que realmente é: um jogo meditativo sobre o tempo, propositalmente maçante e vago; incrivelmente sutil e belo.
PS: apaguei meu progresso para novas capturas e para deixar a Sombra solitária até o 400º dia. Nos veremos em 14 de junho de 2022.
Ficha técnica de The Longing
Nintendo Switch, PC (via Steam para Windows, macOS e Linux) | 1.4 GB |
Desenvolvido por Studio Seufz | Puzzle, aventura, Indie, Jogo Arte |
Publicado por Application Systems Heidelberg (ASH) | 1 jogador |
Traduzido ao português do Brasil 🇧🇷 | Livre |
Joguei The Longing no Nintendo Switch, com o console quase sempre atracado na doca. Em algumas ocasiões pedi para a Sombra executar tarefas no modo portátil, saindo quase em seguida. Contudo, recomendo sessões curtas e quase diárias.
O jogo está em português do Brasil, mas não encontrei maneira de configurar o idioma antes da primeira cena! The Longing foi originalmente lançado para computador em março de 2020 e chegou ao Nintendo Switch em 14 de abril de 2021.
Onde comprar The Longing?
- para Nintendo Switch, por R$ 74,99 pela Loja Nintendo
- para computador, por R$ 28,99 por meio das lojas digitais Steam, GOG.com e Humble
*Review elaborada em um Nintendo Switch, com código fornecido pela Application Systems Heidelberg.
The Longing
R$ 74,99Prós
- Jogo como arte
- Temática filosófica: tempo e propósito
- Subverte clichês de jogos
- Cenários desenhados à mão
- Você não precisa esperar 400 dias: o tempo passa mais rápido quando a Sombra se diverte
Contras
- Lento, ainda que propositalmente
- Não é para todos, de difícil recomendação
- Requer paciência e disciplina para retornar
- Discrepância de preços entre PC e Switch
- O servo me lembra o Sr. Burns dos Simpsons