Manifold Garden | Review

Manifold Garden é um jogo de puzzle em primeira pessoa cujo mundo se repete infinitamente e artisticamente testa até onde vai a imaginação. A semelhança com a famosa obra com escadas em todas as direções e ângulos “Relatividade”, do artista holandês M. C. Escher, não é coincidência, já que o criador de Manifold Garden se inspirou diretamente nela e até usou o título provisório de “Relativity”. A ideia do jogo é do artista estadunidense William Chyr, que o descreve como “um jogo que reimagina a física e o espaço”.

Originalmente lançado para Windows, macOS e sistemas iOS em 2019, Manifold Garden recebeu diversos prêmios, sendo recentemente finalista na categoria de melhor estreia no GDC Awards 2020 e também no Bafta 2020. Desta forma, o feito do pequeno time de William Chyr Studio, composto somente por nove pessoas, levou o jogo ao PlayStation 4, Nintendo Switch e Xbox One em 18 de agosto deste ano. No PC, pode ser adquirido por Epic Games Store e em breve chegará à vitrine da Steam.

Índice da análise de Manifold Garden

A premissa de Manifold Garden

Como fazer uma análise de um jogo de puzzle sem revelar o segredo da mecânica e, ao mesmo tempo, expor seus pontos fortes e fracos? Manifold Garden explora um universo com um conjunto diferente de leis da física. Neste mundo, o jogador manipula a gravidade, sendo capaz de transformar paredes em pisos e pisos em paredes.

O objetivo é resolver quebra-cabeças com a geometria e a arquitetura ao redor, navegando em primeira pessoa e aproveitando-se das estruturas encontradas no percurso. A maioria dos quebra-cabeças envolve agarrar um bloco e levá-lo até uma plataforma para que seja ativado. Contudo, isso não passa de super-simplificação: o bloco apenas pode ser movido quando aceso pela cor de seu piso, ou seja, quando inativo, se transforma em um bloco firme e imóvel.

O arquitetura de Manifold Garden se repete ao infinito e será necessário "cair" para resolver alguns puzzles. (Imagem: Divulgação)
O arquitetura de Manifold Garden se repete ao infinito e será necessário “cair” para resolver alguns puzzles. (Imagem: Divulgação)

Cores, aliás, auxiliam o jogador ao indicarem a direção da gravidade. Pense num dado, com suas seis faces enumeradas: se você pudesse viver em um planeta cúbico em Manifold Garden, transitaria entre as seis faces. Neste caso, seis cores. Só é possível interagir com blocos e outros elementos quando a gravidade estiver orientada de acordo com a cor compartilhada entre objeto e o piso.

Caia de qualquer beirada e logo perceberá que o mundo e suas edificações se repetem ad infinitum. Será preciso se jogar para alcançar novos lugares e resolver alguns quebra-cabeças ou para navegar rapidamente. Caso caia por acidente, pode sofrer um pouco ao reencontrar a direção, já que o cenário é relativamente grande. Ao avançar no jogo, os quebra-cabeças trarão árvores e outros elementos naturais, imersos e perdidos em um mundo estéril, que devem ter a vida devolvida.

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O ambiente de Manifold Garden se repete infinitamente de tal forma que, ao cair, o jogador pousa em na própria estrutura. (Imagem: William Chyr of Manifold Garden / CC BY-SA)

Visuais

Não só a mecânica, mas também os visuais de Manifold Garden estão inspirados nos trabalhos de construções impossíveis e de exploração do infinito de M. C. Escher, sobretudo “Relatividade”. Sendo um jogo de puzzle, o papel das cores na distinção entre formas e funções é um componente fundamental de sua roupagem.

William Chyr, criador do jogo, trabalhou no projeto durante aproximadamente oito anos e se inspirou também em outros trabalhos de diversos meios. Entre os videogames, Portal, Fez e The Witness ajudaram a compor a produção, enquanto – pelo lado dos filmes – A Origem e 2001: Uma Odisseia no Espaço. Além disso, alguns livros foram referenciais, assim como (e principalmente) a arquitetura de Frank Lloyd Wright – que desenhou o Museu Guggenheim de Nova Iorque – e de Tadao Ando – projetista do Museu de Arte Moderna de Fort Worth, cuja semelhança é explícita com alguns visuais presentes no jogo.

O criador de Manifold Garden se inspirou na obra do artista holandês Escher para criar cenários surreais. (Imagem: Divulgação)
O criador de Manifold Garden se inspirou na obra do artista holandês Escher para criar cenários surreais. (Imagem: Divulgação)

Parece existir um filtro com poucas cores compondo o gradiente entre cores claras misturadas com lilás e tons de azul. As formas geométricas secas e retilíneas criam um estilo único e sopram uma personalidade que define a ambientação do jogo. Tudo isso está a serviço do principal componente: as peças móveis dos quebra-cabeças logo saltam aos olhos por terem tons de amarelo ou de verde, por exemplo, extremamente vivos e saturados.

O cenário brutalista se repete ao infinito em cada uma das três dimensões, um surrealismo que ajuda a dar um nó mental fora do desafio em si – um mero pano de fundo em um mundo com edificações imersivas que dobram e derretem nossa percepção. Ver Manifold Garden é uma bela novidade e deixa até um leigo imaginando sobre quão grande foi o desafio técnico em realizar tal feito. Você percebe o porquê de Chyr se intitular um artista (antes de desenvolvedor).

Entre os trabalhos que inspiraram Manifold Garden estão o filme A Origem e o Museu de Arte Moderna de Fort Worth, assinado pelo arquiteto Tadao Ando. (Imagem: Divulgação)
Entre os trabalhos que inspiraram Manifold Garden estão o filme A Origem e o Museu de Arte Moderna de Fort Worth, assinado pelo arquiteto Tadao Ando. (Imagem: Divulgação)

A máxima do design de forma e função se aplica às cores assim como se aplica à geometria arquitetônica do jogo. Se as cores de objetos interativos são vibrantes e contrastam com a paleta pastel de lilás e azuis por um lado, por outro, a estrutura de portas estilizadíssimas e o posicionamento de enormes janelas ajudam ao jogador facilmente identificar os objetivos ou destinos, propiciando visibilidade a grandes distâncias. Apesar de um possível nó mental inerente à lógica de sua mecânica, o mundo de Manifold Garden tem pontos de referência (como as enormes árvores) para que você não fique (eterna e desamparadamente) perdido.

Som

Ao ver uma imagem ou um vídeo do jogo, é fácil deixar a trilha sonora do jogo em segundo plano. Os efeitos sonoros não são nada de outro mundo, mas a composição musical traz uma aclimatação etérea e transpõe o jogador para dentro de um cubículo infinitamente espelhado.

E mesmo passando desapercebida para muitos, a trilha sonora é a responsável por grande parte da imersão em Manifold Garden. Talvez, por isso, esteja disponível em três vitrines de streaming de música (bandcamp, Spotify e Apple Music).

Entre os trabalhos que inspiraram Manifold Garden estão o filme A Origem e o Museu de Arte Moderna de Fort Worth, assinado pelo arquiteto Tadao Ando. (Imagem: Divulgação)
Entre os trabalhos que inspiraram Manifold Garden estão o filme A Origem e o Museu de Arte Moderna de Fort Worth, assinado pelo arquiteto Tadao Ando. (Imagem: Divulgação)

Caminhando por ambientes, você escutará os passos secos do seu personagem sem nome enquanto outro som da natureza ajuda na composição auditiva – folhas de uma árvore ao vento ou a queda d’água em uma fonte. As engrenagens das portas parecem pertencer ao ritmo imposto pelos sons de xilofone ao interagir com algum objeto.

A trilha sonora é vazia e, paradoxalmente, ocupa o ambiente ao resolver uma sala ou se alcança um novo estágio do jogo. Em um dos primeiros quebra-cabeças, por exemplo, ao abrir a porta para a parte exterior, a música sintetizada e dissonante cresce – similar às composições de Vangelis para Blade Runner – e se mistura com o vento da queda sem fim até que seja interrompida pelo impacto da próxima plataforma, que encerra a melodia com um forte baque de percussão.

A abstração deste visual em Manifold Garden combina perfeitamente com a ambientação sonora do jogo. (Imagem: Divulgação)
A abstração deste visual em Manifold Garden combina perfeitamente com a ambientação sonora do jogo. (Imagem: Divulgação)

Pode ser que você não queira parar para ouvir toda a trilha sonora de ponta a ponta, mas o conjunto da obra visual com a sonora é coerente, relaxante e “materializa” uma beleza atípica nos videogames (e, para dizer a verdade, em qualquer outro meio e no circuito mainstream).

Jogabilidade

Quase todo jogo de puzzle tem a essência de controles simples e a cobertura de complexidade adicional cresce exponencialmente graças às mecânicas do jogo. Se as bases dessas mecânicas for firme, o jogo terá um conjunto de regras coerentes e, ao combinar possibilidades, novos desafios surgem. E isso é o que acontece com Manifold Garden: controles simples para uma jogabilidade expansiva.

Por ser em primeira pessoa, Manifold Garden usa os dois direcionais analógicos para movimentação e observação espacial. Um dos botões da face interage e segura objetos enquanto os típicos botões de ombro (respectivamente para Switch, Xbox e PlayStation: L, R; LB, RB; ou L1, R1) giram tais objetos nos sentidos horário ou anti-horário. Além disso, um dos gatilhos alterna entre correr ou andar. E é só.

A movimentação “robótica” do personagem causa um impacto mínimo, dado que não compromete ou atrapalha. As interações funcionam com a simplicidade proposta, apesar de que os consoles se beneficiariam positivamente caso a mira tivesse um magnetismo com os objetos interativos.

Descubra como movimentar cubos e abrir portas para desintoxicar o mundo de Manifold Garden. (Imagem: Divulgação)
Descubra como movimentar cubos e abrir portas para desintoxicar o mundo de Manifold Garden. (Imagem: Divulgação)

Redefinindo a gravidade

Como falei, a mecânica gira entorno da gravidade. Literalmente gira, já que você pode alternar entre as seis faces de um cubo – a colorida será a superfície na qual o personagem está andando e a única que recebe influência da força gravitacional. Qualquer objeto em uma das outras cinco faces fica completamente inerte (mesmo que, ao girar, um cubo devesse cair).

Se você lembrar um pouco das aulas de física do colégio, é possível que seu professor ou sua professora tenha perguntando a direção da força da gravidade. No meu caso, lembro claramente da frustração: “Não é pra baixo, é pro centro!” – freneticamente apontando em direção ao centro do corpo esférico. Pois bem, a gravidade em Manifold Garden ignora o mundo real e age apenas sobre o plano no qual você se encontra, que – por sua vez – recebe uma cor específica. E apenas podemos interagir com os objetos deste plano.

Quebra-cabeças e dificuldade

Manifold Garden consegue variar bem seus quebra-cabeças apesar de ter um pequeno leque de mecânicas. Todos têm cubos como elementos centrais e, na maioria das vezes, só devemos levá-los de seu local de origem até um interruptor (normalmente temos ao alcance da vista um fio condutor partindo de uma porta, pelo piso e pelas paredes, até um interruptor).

Em outras ocasiões, é obrigatório girá-los ou movê-los de tal forma que alterem o curso da água. Finalmente, o uso mais instigante acontece ao movimentá-los pelo cenário somente para que sirvam de plataformas em uma espécie de cubos “antigravitacionais”, desafiando a gravidade e flutuando no espaço vazio.

A maior frustração em Manifold Garden é a desorientação após uma queda desatenta ou ao voltar para o jogo. (Imagem: Divulgação)
A maior frustração em Manifold Garden é a desorientação após uma queda desatenta ou ao voltar para o jogo. (Imagem: Divulgação)

Manifold Garden é consistente do início ao fim e sempre abordar novos conceitos sem trazer texto ou instruções na tela. Apesar de exigirem um respiro fundo para desembaralhar a mente e se localizar, os quebra-cabeças não são difíceis. Portal e Portal 2, por exemplo, possuem situações mais “cabeludas” e frustrantes. E, quase sempre, é a confirmação daquilo que Manifold Garden se propõe: mergulhar e apreciar a surrealidade estrutural, sentir-se “tetricamente” perdido em um mundo fractal; os quebra-cabeças são uma força secundária na natureza do jogo.

A questão acima só encontra um agravante: a gravidade é uma força manipulável e, caso você gire ou caia do cenário, espere uma longa e desorientadora queda. É claro que é um recurso proposital, pois ganhe embalo e você rapidamente chegará em outra edificação. Mas, ao errar, a punição é severa, já que não há uma forma fácil e rápida de voltar. Ficar perdido pode ser a pior sensação já que reconstruir o caminho de volta é tão divertido quanto mergulhar naquela caixa de fios e desembaraçar metros e metros em busca de um fone.

A dificuldade dos quebra-cabeças é secundário em Manifold Garden. A perplexidade e admiração dos fantásticos ambientes surreais e impossíveis são o destaque. (Imagem: Divulgação)
A dificuldade dos quebra-cabeças é secundário em Manifold Garden. A perplexidade e admiração dos fantásticos ambientes surreais e impossíveis são o destaque. (Imagem: Divulgação)

Ou seja: o ponto alto de Manifold Garden será em algum momento um vilão fora da narrativa para o jogador. Um erro desatento custa caro e a viagem de volta para se reencontrar será tediosa. Assim, além de um magnetismo para interagir com cubos, seria ideal ter algum aviso de alerta ao se aproximar da beirada. Se parar o personagem por completo destruiria a liberdade e o ritmo do jogo, talvez uma indicação visual para evitar quedas desnecessárias pudesse ser implementada. Essa desorientação aconteceu, comigo, assim que pude sair ao “ar livre”. Felizmente, uma vez aprendida a lição, todos os cuidados foram tomados para que não acontecesse novamente. Por outro lado, o chateio pode te desligar um pouco do jogo.

Por fim, houvesse um botão para pular, algumas partes seriam melhores: o personagem não sobe pequenos degraus ou algumas partes das copas das árvores, obrigando o jogador a se lançar em uma queda desproporcional apenas para alcançar um espaço minúsculo.

Vale a pena comprar Manifold Garden?

Sem correria, Manifold Garden dura pouco mais de seis horas. Recomendar um jogo de quebra-cabeças, principalmente em primeira pessoa, não é uma tarefa fácil, haja vista quantas pessoas realmente desfrutam do estilo e percebem o valor pago. Ao contrário de muitas aventuras, não é um jogo para se assistir, mas para experimentar.

Quem curtir puzzles e artes, encontrará um verdadeiro banquete meditativo, cortesia de uma arquitetura que absorve o jogador. Essa arquitetura se desdobra naturalmente à medida que nos acostumamos com a subversão de regras no universo do jogo, assim como surrealistas subverteram o mundo da arte.

A desorientação de uma queda infinita pode resultar em um processo frustrante para desembaraçar fios e reencontrar o caminho. Contudo, a beleza de Manifold Garden é digna de contemplação, sendo difícil saber se é uma obra de arte realizada como jogo ou se é um jogo com uma forte influência artística.

Se você curte puzzles e já estava curioso a respeito do jogo, Manifold Garden é uma ótima pedida, já que é uma experiência única e, em sua aparente complexidade, oferece um escapismo tranquilizante e belo de se ver, de se ouvir e de se passear por.

Mais sobre Manifold Garden

Jogo de puzzle em primeira pessoa Desenvolvido por: William Chyr Studio
Somente um jogadorClassificação: Livre

Idealizado pelo artista estadunidense William Chyr e desenvolvido por seu estúdio, um time de nove pessoas, Manifold Garden apareceu pela primeira vez em 2019, depois de quase oito anos de produção. Com menus em português, Manifold Garden não conta com texto ou instruções durante o jogo.

Manifold Garden recebeu e foi nomeado a diversos prêmios, incluindo a categoria de melhor estreia no GDC Awards 2020 e também no Bafta 2020.

A opção mais barata para curtir o jogo é por computador com Windows. Por enquanto, só é possível adquiri-lo pela Epic Games Store, mas em breve estará pela Steam. Nos consoles Xbox One e PlayStation 4, os preços são um pouco mais altos, mas o jogo roda igualmente bem, até no modo portátil do Switch, que foi como mais joguei. Para comprar o jogo digitalmente no console da Nintendo, é preciso usar a eShop estadunidense. Finalmente, também é possível jogá-lo em sistemas iOS (iPad, iPhone e Apple TV) com acesso por meio do serviço Apple Arcade.

É possível adquirir Manifold Garden nas seguintes plataformas:

Especificações para PC

MínimoRecomendado
Sistema Operacional Windows 7, 8, 10Windows 7, 8, 10
Placa de vídeo Nvidia 460Nvidia 1070
Processador Intel Core i5-750 (2,66 GHz)Intel Core i7-4790k (4,00 GHz)
Memória RAM 2 GB8 GB

*Review elaborada em Nintendo Switch com código fornecido pelo William Chyr Studio.

Manifold Garden

R$ 37,99
8.8

Diversão

9.0/10

Visuais

9.0/10

Som

8.5/10

Jogabilidade e dificuldade

7.5/10

Ineditismo

10.0/10

Prós

  • Único
  • Cenários fantásticos e construções impossíveis
  • Ambientação imersiva
  • Harmonia visual e sonora
  • Viciante

Contras

  • Controles nem tão refinados
  • Quedas podem ser frustrantes
  • A beleza artística se sobrepõe a opções de acessibilidade
  • "Relativamente" curto

Carlos Maestre

Jornalista que passou a pesquisar acessibilidade digital pela constante necessidade de inverter o eixo Y - desde GoldenEye 007. Cresceu com a Nintendo e fã da (atual) Microsoft, quer a velha Rare de volta. Além de achar divertido caçar conquistas, sofrerá uma intervenção a qualquer instante por culpa de Stardew Valley.