The Last of Us Part II e as transformações narrativas dos jogos: paternidade, masculinidade e as reações dos haters
Viver no século XXI é uma tarefa cada vez mais sórdida. A cada instante pululam informações e mais informações diante de nossos olhos e, francamente, é difícil não se deixar atingir por elas, sobretudo em um período como o de isolamento social que, basicamente, nunca existiu no Brasil. De toda forma, os nervos vão à flor da pele e as reflexões também. São quase cinco da manhã e, em mais um dia, sinto dificuldade para dormir. Sento, ligo o vídeo game e começo a rondar pelos Estados Unidos de The Last of Us Part II.
Em um dado momento, Joel faz uma surpresa no aniversário de Ellie, mesmo em meio a um mundo desgraçado. Para muitos, um trecho de uma narrativa qualquer. Mas, pelo menos pra mim (e provavelmente alguns), algo muito maior. Na cena, o olhar paterno e apaixonado de Joel traduz algo que venho pensando há muito tempo, mas acabo deixando de escrever, sobretudo por conta da carga pesada da vida cotidiana. O que me restam são frases soltas na cabeça e pensamentos antes de pegar no sono, cada vez mais raro.
Os jogos são uma das formas de arte narrativa mais revolucionárias da contemporaneidade. Seria tolice acreditar na falsa aura colocada por alguns pseudo eruditos em cima de uma plataforma tão ativa e, ao mesmo tempo sensível. Sim, as formas de se roteirizar um jogo se modificam cada vez mais, trazendo assuntos extremamente complexos para uma arena que eu ainda considero muito tóxica e bruta. E bem, a questão da masculinidade e da própria paternidade são cada vez mais tratadas por esse meio.
A ira que paira sobre The Last of Us Part II
The Last of Us Part II foi lançado há pouco tempo mundialmente e, por ter diversos pontos divergentes desse meio, automaticamente sofreu represálias do mundo gamer. O site Metacritic mostra exatamente a ira desses jogadores que nem sequer tocaram na obra e, automaticamente, sentem-se obrigados a dar notas negativas. Não sei se pela masculinidade frágil ao ver personagens lésbicas ou pela mera toxicidade consolista que é cada vez mais comum nas redes. Mas não se engane: essa birra infundada não irá tirar o brilho de uma história como a do jogo.
No entanto, rebobinando um pouco o assunto, voltando para as questões paternas, li, joguei e vi muito sobre dois títulos (dos que me lembro nesse momento), que remetem a esses assuntos (e que também desagradaram a uma parte do público). O primeiro, God of War, lançado para PlayStation 4, dando um reboot na franquia, revolucionou tudo o que foi visto na saga do badass Kratos. Diferentemente dos jogos anteriores, onde o parrudo matador de deuses transava, matava sem piedade e bradava palavras fortes ao longo de uma narrativa um tanto quanto simples, a nova versão do personagem o trouxe em um papel completamente distinto. Kratos agora é pai e tem que se virar para ensinar as coisas da vida para Atreus. Só essa reviravolta do jogo ter um roteiro mais pormenorizado e, consequentemente, sensível, já foi o suficiente para os fãs urrarem contra o game.
Uma virada nas narrativas
Todavia, o que muitos consideram como “mimimi”, deveria ser considerado uma vitória: os jogos, por mais singelos que possam ser, podem ter uma narrativa interessante e cativante, indo além de socos, chutes, mutilação, nudez e sangue. Essa, aliás, é a fórmula perfeita para o machão gamer (ou do viking brasileiro). Não que eu não goste, muito pelo contrário. Sou fã incondicional da sanguinolência dos filmes de Quentin Tarantino ou de jogos como Doom Eternal ou a série Wolfenstein. Mas, ainda que goste do imediatismo e de toda a pancadaria, sinto falta de uma história, sinto falta de sentir algo mais durante o roteiro que me leva.
E bem, tanto os jogos da série The Last of Us, quanto God of War me fizeram ver que o que é bom pode ficar ainda melhor e mais profundo. Não que eles sejam os únicos jogos a fazer isso. Mas, pelo assunto que estou querendo tratar aqui, eles são essenciais. Aliás, acrescento mais um que me tirou lágrimas e que me surpreendeu bastante em seu desfecho: Death Stranding (confira nossa review aqui), incrível obra de Hideo Kojima. Esse jogo em especial, me fez sentir um vazio terrível após sua conclusão. Ele é sim, exaustivo, mas nem por isso é ignorável e me fez perceber não só questões de masculinidade, sensibilidade e paternidade.
Me fez ver também o quão imediatista é a nossa geração. Pessoas que nem sequer passaram de 2 horas de jogo já queriam destroça-lo, tal como estão fazendo com The Last of Us Part II. E olha que, sinceramente, a trama deste último é muito mais agitada que a do primeiro. Mas, Death Stranding é um jogo complexo. Ele é contemplativo e nele, a morte dos inimigos é um caminho bem inviável. Basicamente, só é viável para quem quer ver obliterações. São caminhadas longas, paisagens lindas, entregas para diversos personagens e conexões que são feitas. É uma simulação de entregador? Podemos dizer que sim, mas é muito além. Esse jogo em especial, me fez pensar no quanto a paternidade está presente no mundo dos jogos e, em muitos casos, os nossos olhos velozes e vorazes deixam isso passar batido.
Aquele olhar em The Last of Us Part II…
Mas por qual motivo estou escrevendo isso? Pois bem, o olhar de Joel para Ellie me fez ver o amor de um pai para uma filha (mesmo que não seja do mesmo sangue). E vice-versa. Ela também o vê como pai, mesmo que em meio às confusões da idade. As ações de ambos no primeiro jogo deixam essa questão evidente. No entanto, gostaria de crer que a paternidade transforma os homens, ou que simplesmente abordar essa temática ajudaria, mas sabemos que nem sempre é assim.
Aliás, um ótimo jogo que dá um ótimo exemplo de pai abusivo é Wolfenstein II: The New Colossus. Além de tratar de assuntos extremamente delicados como nazismo, machismo e racismo, o game traz uma parte da infância de B.J. Blazkowicz em que o pai bate nele e na mãe, além de tratar uma criança negra do bairro com total preconceito. A meu ver, dois pontos de extrema importância em nossa realidade. Mas, regressando ao ponto, sabemos que não há uma correlação da paternidade ser algo bom. No entanto, as narrativas mostram a possibilidade de tais personagens se tornarem melhores e, consequentemente mais sensíveis ao mundo ao seu redor, que é sacudido por ter responsabilidade pela vida de alguém.
É claro, são narrativas e eu estaria sendo muito simplório de achar que a vida é assim. Todavia, trazer tais questões (incluindo todas essas citadas acima) é de suma importância para um possível processo de “desintoxicação” desse malfadado universo, onde o imediatismo e a jocosidade reinam tranquilamente (algo que vimos no caso do Milgrau e em vários outros momentos), enquanto os poucos que levantam suas vozes para ter o mínimo de representatividade, sofrem de inúmeras formas.
Jogar como algo além do entretenimento
Honestamente, jogar tem sido pra mim muito mais do que um mero passatempo. Tem sido um exercício diário de reflexão e até mesmo de empatia. Todas as várias aventuras que vivi me fizeram perceber detalhes da minha masculinidade que, francamente, boa parte dos grupos de amigos em que convivo pouco se importam. Não os culpo, mas também não me sinto “o iluminado” por ter esse tipo de pensamento. Não sou isento de erros, mas percebo que, ao jogar e vivenciar tudo isso e, mais ainda, em escrever e ter uma formação voltada para as humanidades, é meu dever tentar tratar disso não só para mim mesmo, mas para todas e todos.
Discutir a toxicidade do mundo gamer é, basicamente, discutir o estereótipo de masculinidade em que todos estamos inseridos. É ver quer ser homem não é ser macho, bruto, brigão, musculoso, viking de Taubaté (me perdoem os nascidos na cidade). Vai muito além da aparência e da rudeza. E, bem, os jogos estão, em alguns casos, quebrando gradativamente esses estereótipos, o que é uma grande vitória. E não serão os boomers que irão frear essa onda consciente dos games. O que muitos chamam de “mimimi” e “lacre” são questões de representatividade e profundidade que só os seres que usam esses termos insistem em não ver.
Alguma possível conclusão
Enfim… Divaguei bastante por entre essas linhas e deixei um tanto de pontas soltas para dizer que, no geral, essas discussões propostas por diversos jogos ainda vão causar muito desconforto e conflitos – e isso é necessário. Mas, por outro lado, diversas pessoas estão tendo essas mesmas ideias e reflexões, o que é um êxito enorme a ser considerado. Os jogos são uma forma interessante de se desconectar do mundo real e, ao mesmo tempo, reinterpretar ou até mesmo aprender coisas sobre a própria realidade. É um grande plot twist, eu sei, mas como não pensar em si e no mundo ao seu redor após vivenciar aventuras tão complexas? E melhor: por qual motivo não pensar na questão da masculinidade? Isso dói? Fica a questão…
Enfim, não quero esgotar o assunto em apenas um artigo. Muito pelo contrário, gostaria de propor que tais questões fossem mais debatidas. Assim, todos nós certamente seríamos melhores.
Ah, e sobre The Last of Us Part II (ou qualquer outro jogo), uma observação: você é livre para não gostar. No entanto, busque jogar antes. É bem feio sair por aí emitindo opiniões completamente deslocadas da realidade ou ofensas como “a mídia é comprada”. Você não é obrigado a concordar com as opiniões emitidas, mas, por favor, jogue e tire as conclusões por si mesmo e, aí sim, discuta de forma sadia suas ideias sobre. Afinal de contas, a internet não é terra sem lei. Por fim, te convido a ler nossa review, escrita por um fã incondicional da franquia.