Bokura | Review
Sabe quando as pessoas lembram de um mesmo evento de maneiras diferentes? Os relatos ocorrem no mesmo tempo e lugar e, ainda assim, soam distintos? Ao ser uma aventura feita sob medida para duas pessoas, Bokura brinca um pouco com essas questões. Prepare-se para uma jornada cooperativa peculiar e estranha, com quebra-cabeças que desafiam a percepção, já que a tela vista por cada jogador é única, nos transportando para a surreal, bizarra e ainda assim encantadora fantasia em pixel art de Bokura!
Bokura
Desenvolvido pela mente criativa de tokoronyori (@tokoronyori no Twitter), Bokura promete uma jornada que exige uma conversa ativa entre os dois jogadores numa brincadeira de descrever o cenário, entender as habilidades de cada um, planejar ações e coordená-las para avançarem juntos. O jogo é fruto da primeira safra do laboratório de criadores independentes da Kodansha (@kodanshaGCL no Twitter), que publica o título. Se quiser conferir, deixo aqui uma entrevista do criador para o programa Creator’s Lab da Kodansha assim que o game teve seu desenvolvimento concluído (em inglês e japonês).
Esta joia indie foi lançada em 9 de agosto de 2023 e está disponível para PC, via Steam (R$ 17,89), iOS (iPhone e iPad, R$ 24,90), Android (R$ 23,99) e Nintendo Switch (R$ 17,89), e veio para desafiar a forma como você e outro jogador interagem ao verem telas distintas. Portanto, encontre alguém para solucionar quebra-cabeças, abram uma chamada de WhatsApp ou Discord se estiverem em locais distantes e vão explorar um mundo onde somar percepções é tudo!
E, sim, vamos aos problemas pontuais: já que cada jogador deve jogar em seu próprio dispositivo, Bokura obriga a compra de cópias separadas. Para esta análise, a editora Kodansha enviou duas cópias de Nintendo Switch para o Pizza Fria. Uma vez que o jogo não oferece sistema de voz (uma limitação compartilhada pelo Switch), eu joguei com meu irmão por chamadas de WhatsApp e evitamos enviar fotos ou vídeos dos diferentes quebra-cabeças – uma decisão pra lá de acertada.
À data de escrever esta análise, não consegui confirmar se o jogo aceita crossplay. Perguntei à Kodansha por Twitter, mas estou esperando resposta!
“Nós em um inverno diferente”
Bokura é um jogo indie surpreendentemente único que brinca com os limites de jogos cooperativos, desafiando os jogadores a repensarem suas percepções visuais, obrigando a troca constante entre eles para descrever elementos na tela e sobre o que cada um é capaz de fazer. Com o jogo instalado, começamos uma ligação de voz por WhatsApp.
Hora de abrir o jogo! Tive uma pequena frustração com surtos de ansiedade: os termos aparecem em japonês e o minimalismo dos ícones torna a navegação pelos menus um pouco mais complicada do que realmente deveria ser. Avisei meu irmão imediatamente, “toca o direcional pro lado até começar a mudar o idioma”. Infelizmente, Bokura tem como opções de idiomas apenas inglês, japonês e chinês.
Na tela seguinte, fica evidente que o jogo vai se recusar dar pistas ou orientações aos jogadores. O logotipo do título flutua com uma cabeça de cervo – metade completamente preenchida, metade texturizada como se fosse um maquinário – acima de três pequenos ícones e do texto para escolher a região do servidor. Ah, um detalhe, meu irmão e eu jogamos a quase 9000 km de distância e adianto que foi, na maior parte, uma experiência fluída. Um pequeno engasgo aqui ou outro alí durante a transição de telas para novos quebra-cabeças, mas nada inconveniente.
E vale lembrar que os enigmas não são necessariamente estáticos: muitos desafios exigem movimentação simultânea dos jogadores. Se um deles cair de uma altura mortal, se afogar ou for pego por um dos inimigos, o quebra-cabeça volta ao ponto de checagem mais recente. Mas voltando a falar da conexão, que é feita por código: um dos jogadores gera uma senha curta na tela inicial e o outro insere esse código. Pronto! Um sistema de co-op similar ao de Ashen.
No começo, a arte em pixel chama bastante atenção por não apelar para o clichê de cores vibrantes, mas pastéis. Logo na abertura, jogadores terão referências aos jogos Pokémon de Game Boy e entenderão de onde veio a inspiração do desenvolvedor.
Então, um momento crucial para a jornada: dois garotos aparecem na tela e o jogo pergunta qual deles é você. Muito parecidos, um deles veste um abrigo verde enquanto o outro veste um abrigo azul. Um está alinhado com metade sólida da cabeça de cervo; o outro, com a metade tecnológica.
A partir dessa escolha, cada jogador acompanha a versão de seu personagem. Corta pra uma cena urbana.
Sozinho em um vagão de trem à noite, enquanto volta de um cansativo dia de trabalho, um dos protagonistas contempla as luzes urbanas que passam pelo trem a diferentes velocidades.
Ele comenta como o inverno está muito frio e aproveita a introspecção desse momento solitário para associar aquilo que vê pela janela com experiências que viveu. Frustrado com o ritmo do dia a dia, ele confessa que não quer aceitar o fato de ter se tornado um adulto chato.
Ao rolar o feed de suas redes sociais, ele se depara com o novo lançamento de Packet Monsters –abreviado de Pakémon– e revela o pano de fundo da nossa jornada: as lembranças de jogar as versões Gold & Silver com seu melhor amigo de infância, quem nunca mais viu depois daquele inverno, aquele quando tudo aconteceu.
[masterslider id=”74″]
Como você provavelmente imagina, os jogadores controlam os amigos e o jogo se passa naquele inverno. Cada um com sua respectiva lembrança, o que justifica a diferença em abordagem. Aliás, Bokura significa “Nós em um inverno diferente”. Agora, com a visão dos protagonistas como crianças jogando seus Game Boys em um parque, descobrimos que um é filho de mãe solo e quer fugir de casa, frustrado por não conhecer seu pai, enquanto o outro é filho de pais ricos que não lhe dão atenção, mas lhe exigem muito.
De realidades muito diferentes, eles elaboram o que seria a última travessura antes do outro fugir de casa por aí: explodir a estátua recém-inaugurada na cidade. E é aí que eles começam a atravessar um parque e coisas estranhas acontecem. E jogar Bokura foi muito curioso porque o título consegue criar uma interação sem forçar a mão ou deixar tudo complexo demais. OK, tem que ligar pro outro jogador (caso não esteja perto) ou comprar duas cópias? Sim. Mas fora isso, uma vez no jogo propriamente dito, é uma atividade em dupla, sem tirar nem pôr. E uma muito boa!
Jogabilidade
Como comentei, o jogo é feito sob medida para nada mais que dois jogadores em dispositivos diferentes, sem tela dividida, sem parceiro controlado pelo computador e sem couch co-op. Portanto, os jogadores têm visões distintas, fazendo com que elementos sejam móveis apenas para um ou para o outro em determinados contextos.
Deixando de lado as complicações de um menu que não reconhece o idioma automaticamente para a sua região e que peca pelo abuso do “menos é mais”, o jogo fica mais intuitivo quando dá o controle aos jogadores. No início, não há muita mudança. Os garotos andam juntos, aprendem a saltar valas que impedem o progresso e a empurrar caixas para subir nelas e assim alcançar plataformas altas.
Bokura se apresenta como um jogo de plataforma com quase nenhum quebra-cabeça e, progressivamente, inverte a fórmula e se transforma num jogo com ênfase nos quebra-cabeças. A primeira barreira é uma ponte velha sobre um lago. Sem dicas, passamos juntos e a ponte imediatamente se rompeu, matando ambos. “Espera, passa você primeiro”. E foi assim, aprendendo a dosar ações, movimentos e a alternando protagonismos, que continuamos por Bokura.
Para atravessar o bosque, os personagens pulam e interagem com certos objetos. Assim, devemos saber brincar com o peso de caixotes em gangorras e também saber onde colocar montes de folhas que amortecem nossas quedas. Estas tarefas são possíveis quando pensamos em equipe e quase todos os enigmas são relativamente rápidos. Logo que saímos de um desafio, o jogo salva o progresso e vamos para o próximo. Se fecharmos o jogo, retomamos sem problemas do ponto onde paramos com o mesmo parceiro.
Depois de alguns minutos, os amigos se deparam com a carcaça de um animal morto. De um cervo, para ser específico. E, então, tudo fica um tanto surreal.
Os garotos desmaiam e uma criatura estranha aparece. A partir deste ponto, os jogadores passam a ver ambientes diferentes – um verá um bosque ainda mais denso e os personagens com formas de pato e de urso; o outro, um mundo de máquinas e personagens como robôs. Em algumas seções, eles têm habilidades específicas, como usar a ossada como teletransporte ou se transformar num lobo robô que serve como plataforma.
Outro exemplo é como os lobos selvagens apenas atacam quem estiver com o personagem que virou o pato e, assim, é fundamental ter timing para servir de isca enquanto o outro jogador, como urso, cria um caminho seguro. Aliás, a morte de qualquer um dos jogadores faz o jogo voltar ao início do quebra-cabeça, que costumam ser relativamente curtos. Apesar das muitas limitações do desenvolvimento independente e, especialmente de um jogo online, uma função de retroceder (rewind) viria a calhar em alguns momentos para evitar frustrações em desafios mais demorados.
Em especial, para evitar frustrações em desafios demorados e que um de vocês erra o último pulo por pouco, muito pouco.
Além disso, certas escolhas na história, como o exemplo envolvendo o casal que busca o filho perdido na floresta, exigem decisões unânimes dos jogadores, o que impacta eventos futuros. Apesar de não terem impacto direto na jogabilidade, isso acrescenta uma camada narrativa interessante, pois as escolhas são absolutas.
E digo “narrativa” de forma deliberadamente vaga, já que Bokura é um jogo muito abstrato e, por isso, interpretativo. Se jogar com alguém que cresceu contigo, talvez isso puxe uma conversa sobre uma história passada. A história e a dificuldade se desenrolam à medida que os meninos tentam desvendar o mistério por trás de suas percepções transformadas e tentam retornar ao seu mundo original.
[masterslider id=”75″]
Visuais e sons
Por mais que seja curto – uma aventura dura cerca de 5 horas –, visualmente, Bokura apresenta uma arte adorável e encantadora que complementa a sua atmosfera surreal. A distinção entre os mundos animal e mecânico é artisticamente bem-executada. E é bem-executada com uma arte pixelada que posso definir como fofa e colorida e, ao mesmo tempo, sinistra e grotesca, aumentando o apelo geral (e a vontade de jogar ao menos uma segunda vez, para ter as duas perspectivas dos acontecimentos).
Como disse antes, as cores não são saturadas, como é costumeiro em jogos com essa direção artística. O tom pastel da paleta parece servir muitíssimo bem ao nosso subconsciente que ilustra a aventura como uma lembrança desbotada, e, como comentamos em nossa aventura, com incertezas sobre os relatos dos amigos – nenhum equivocado, somente inconsistentes e vagos.
[masterslider id=”76″]
Por outro lado, é inegável que a trilha sonora escolhida aprimora a experiência de jogo para um jogo curto, sem ter a ambição maior de se destacar. Ainda assim, os temas musicais compostos pelo pianista japonês Soejima Takuma (Spotify) criam uma paisagem sonora deliciosa que me lembram muito aquelas de, adivinhe só, os primeiros títulos Pokémon para Game Boy.
As músicas, às vezes, são um pouco estranhas, dissonantes, porém simples e cantaroláveis. Uma mistura de piano e chiptune perfeita para temas simples que, de alguma maneira, nos transportam para a floresta ou para o mundo mecânico.
Ritmo estranho com temas esquisitos
Jogos indies possuem ritmos próprios. Todo título independente conta com alguma peculiaridade e essa máxima não seria diferente com Bokura . Quando vi o trailer inicial, notei que o jogo parecia algo lento – a movimentação dos bonecos mesmo. Ao contrário de um jogo de plataforma tradicional, você não corre por telas e mais telas, da esquerda para a direita. A dupla anda vagarosamente, como se os quebra-cabeças pedissem a ela para tomar seu tempo e que encontre a solução antes de agir.
Essa característica está longe de ser um problema, aliás, fico com a impressão que foi uma conveniente moderação para que jogadores interajam sem a tensão de movimentos rápidos e precisos. Aproveitando a questão do ritmo e adicionando estranhezas, a história separa brevemente os jogadores de Bokura para apresentar mais detalhes.
Essas intermissões acontecem logo após um ícone de um microfone cortado aparecer na tela, pedindo gentilmente para que os jogadores não troquem informações sobre aquilo que vão presenciar. Não se preocupe! Assim que terminar, o ícone aparece outra vez para mostrar a queda da “proibição”. Nestes pontos, são poucos, uns três (se não me engano) no jogo todo, surgem personagens para dar tom bizarro à aventura dos dois garotos (de repente, lembrei daquele livro da Coleção VagaLume, “A Serra dos Dois Meninos”).
Os desdobramentos abordam temas leves, como o breve encontro com o garoto que os ajuda a sobreviver à noite fria, e temas muito pesados, como matança de animais, assassinatos brutais com tortura e violência sexual. Não vou comentar mais por que considero a absorção destes momentos como parte essencial da jornada, contudo, estejam avisados para não direcionar o jogo para crianças.
Vale a pena jogar Bokura?
A comunicação eficaz está no cerne da jogabilidade cooperativa de Bokura e é determinante para a diversão dos jogadores. E, como cada jogador vê elementos diferentes em suas telas, o que exige diálogo constante e coordenação para evitar frustrações. Eu diria que este tipo de isolamento entre jogadores, o de mascarar as visões e habilidades por separado, incita uma pureza cooperativa que é, em muitas camadas, mais autêntica que a de outros títulos co-op, como do famoso It Takes Two.
As confusões iniciais com o idioma e com o menu não deveriam afastar jogadores que gostam de jogatinas colaborativas e de quebra-cabeças. Seus desafios são descomplicados, mas não devem ser subestimados.Apesar de exigir duas máquinas diferentes e duas compras, quando fechamos pela primeira vez, emendamos logo a jogatina com personagens invertidos. Durante este recomeço, meu irmão e eu conversamos sobre como víamos as diferenças pelo cenário. Entendemos por que um queria explodir a estátua e por que o outro queria fugir de casa.
Trocamos ainda ideias, teorias, hipóteses sobre as referências a Pokémon (ou Pakémon) e a intenção do autor. O principal trunfo de Bokura é ser reflexivo sem ser necessariamente profundo ou repleto de conteúdo. É reflexivo e instigante porque promove conversação com pequenos gatilhos. No fim, chegamos à conclusão de que Bokura foi surpreendentemente bom: um jogo peculiar, charmosamente bizarro, competente e inesperado.
*Review elaborada no Nintendo Switch, com código fornecido pela Kodansha Games Creator’s Lab.