Entenda como está o cenário de desenvolvimento de jogos no Brasil
O Brasil tem um dos maiores mercados gamers do planeta, com uma estimativa de 67 milhões de pessoas engajadas em jogos eletrônicos de todos os tipos. Porém, não é apenas o público jogador que compõe esse vasto mercado. O desenvolvimento de jogos e softwares também cresce cada vez mais por aqui, embora ainda esteja longe de competir com grandes players do setor no mundo e encontre barreiras internas.
Recentemente, a empresa paulista Wildlife Studios (produtora de Tennis Clash e outros títulos) alcançou o status de unicórnio, ou seja, está entre as pouquíssimas startups com valor de mercado de, pelo menos, US$ 1 bilhão. Focada no desenvolvimento de jogos para dispositivos mobile, a Wildlife foi avaliada em US$ 3 bilhões e captou investimentos na ordem de US$ 120 milhões da Vulcan Capital, se consolidando como uma das maiores empresas do setor não apenas no Brasil, mas na América Latina.
Embora possa ser considerado um dos casos de maior sucesso, a Wildlife não é a única empresa no segmento de desenvolvimento de jogos no Brasil. Segundo o último levantamento realizado pelo 2º Censo da Indústria Brasileiro de Jogos Digitais, conduzido pelo Ministério da Cultura em 2018 com a participação de entidades como a Associação Brasileira das Desenvolvedoras de Jogos Eletrônicos (Abragames), mais de 375 empresas nacionais atuam no setor, o que representa um aumento de 182% em relação ao primeiro censo, realizado em 2014.
“O cenário atual é muito positivo. Recentemente, tivemos o primeiro case de unicórnio do setor de jogos com a Wildlife, e isso trouxe mais interesse por parte dos investidores. A mão de obra vem se qualificando nos últimos anos, o que tem ajudado bastante. Outro ponto positivo é o fato de o setor ter continuado trabalhando mesmo na pandemia, com aumento do consumo. Nosso setor interno acabou se fortalecendo durante esse período complicado e tem mostrado bastante amadurecimento. No entanto, ainda há alguns desafios, tanto regulatórios quanto de incentivos do governo”, explica Luiza Guerreiro, diretora da Vertical de Negócios Economia Criativa da Associação Catarinense de Tecnologia (ACATE).
O aumento do consumo não é o único fator que explica como o setor sobreviveu bem à crise gerada pela pandemia. “A produção de jogos já era naturalmente realizada de forma remota. Muitos já trabalhavam assim, outros tiveram que se adaptar. Mas de uma forma geral, por ser composta por pessoas que já dominam tecnologia, em computadores, nossa indústria não teve problemas que vários outros setores enfrentaram. Do ponto de vista de produção, o setor não foi afetado. Já do ponto de vista de consumo, houve uma procura muito maior. A pandemia só fez mostrar uma tendência que já observávamos de que os jogos são o principal nicho de consumo de entretenimento em termos de arrecadação”, completa Luiza.
Games brasileiros em destaque
Conhecido como o “GTA brasileiro”, o game 171, desenvolvido pela Betagames Group, é um dos bons exemplos de jogos desenvolvidos no Brasil que chegam para grandes plataformas. Inicialmente pensado para o PC, o título sairá também para os consoles em breve. Idealizado em 2010 e reformulado em 2015, o jogo de mundo aberto em 3ª pessoa (com cenário inspirado no interior de São Paulo) surgiu como título independente e ganhou força no mercado, chamando a atenção da Sony e Microsoft.
Outro game de editora independente a ter destaque no cenário internacional é Aritana, desenvolvido pela Duaik e baseado no folclore brasileiro. O título faz parte do projeto ID@Xbox, programa da Microsoft que incentiva estúdios independentes a publicarem seus próprios jogos, que tem como um dos principais incentivadores o brasileiro Daniel Martins, gerente de marketing da Xbox Game Store.
“Desde que Daniel Martins entrou para o time de Xbox, começou a explorar mais o mundo dos desenvolvedores independentes, pois descobriu jogos brasileiros magníficos como Aritana, da Duaik Games, Ninjin, da Brasileira Pocket Trap, e Dandara, da Long Hat House. Ele vem explorando formas de divulgar cada vez mais esses jogos feitos na América Latina para ajudar mais brasileiros a verem a diversidade e capacidade dos nossos desenvolvedores. Em um cenário ideal, essa divulgação aumentaria a venda de jogos, que permitiria esses estúdios investirem e contratarem mais, criarem jogos maiores e mais audaciosos, liberando toda a criatividade brasileira e latino-americana”, explica a escritora Paola Giometti, especialista no universo geek e criadora do RPG President Evil.
Para Paola, o cenário atual permite que grandes jogos sejam lançados mesmo sem um grande estúdio por trás. Um ótimo exemplo é a polonesa CD Projekt Red, que era totalmente desconhecida no cenário nacional e internacional até adaptar a série de livros The Witcher para o mundo dos games, se tornando uma das franquias mais bem sucedidas da atualidade e colocando a Polônia no mapa do desenvolvimento de jogos.
“Antigamente, era possível somente publicar um jogo através de um grande estúdio que pudesse estar por trás de tudo, e que inclusive faria todo o marketing do projeto. Mas hoje já é possível ter um estúdio próprio e lançar os jogos sem depender de um produtor grande”, diz Paola. No entanto, ela ressalta a dificuldade com equipamentos que muitas vezes leva desenvolvedores brasileiros para o exterior. “Talvez a dificuldade para quem está começando é ter máquinas boas que possam rodar os games produzidos, e por isso quem realmente acaba decidindo trabalhar nessa área acaba indo morar fora do país, de modo que possa se inserir nessas empresas que oferecem oportunidades de produzir games com bons equipamentos”.
Apostas online abrem oportunidades
Outro setor em que empresas brasileiras vêm atuando é o mercado de igaming, ou seja, as apostas online. Esse crescimento converge com um número cada vez maior de sites que oferecem slots e outros jogos de cassino no Brasil. Existem inclusive páginas especializadas da catalogação desses cassinos, o que expande ainda mais o mercado.
Um bom exemplo de startup nacional nesse segmento é a Caleta Gaming, de Santa Catarina, que é especializada em jogos de cassino e tem slots, bingos e outros games operando em diversos sites, o que pode ser considerado um grande case de sucesso em um país no qual a regulamentação do setor de gambling ainda encontra alguns desafios. A empresa já desenvolveu 68 jogos nos últimos sete anos, dos quais 56 já estão em funcionamento.
“Vemos que o mercado brasileiro, tanto na área de cassinos quanto de apostas esportivas, vem crescendo muito nessa última década e conta com inúmeros profissionais altamente capacitados por diferentes instituições. É um ramo do entretenimento em que as pessoas gostam de trabalhar com ele, pois é uma forma descontraída e criativa de trabalhar. Espero que em breve o setor de games seja regulamentado no Brasil, mas por enquanto, não é um obstáculo para os profissionais brasileiros poderem realizar trabalhos nesta área para empresas ou clientes estrangeiros”, diz Fabíola Jaeger, CEO da Caleta Gaming, em entrevista à Games Magazine Brasil.
Incentivo político ainda é um desafio
Com a estimativa de que cerca de 1/3 da população brasileira é engajada com jogos, o governo federal tem buscado uma aproximação do público gamer. Recentemente, o secretário da Cultura, Mário Frias, se reuniu com Renan Bolsonaro, praticante de algumas modalidades e filho do presidente Jair Bolsonaro, para discutir o setor de eSports.
No entanto, do ponto de vista de desenvolvimento de jogos, ainda há um longo caminho a percorrer no que diz respeito a incentivo governamental. “O primeiro ponto é o entendimento, ou seja, falar com quem é realmente agente do setor, e não apenas com quem gosta de jogar. Existem muitas áreas dentro do mundo dos jogos, inclusive de jogadores profissionais, mas essa é uma pequena parcela. Precisamos que o governo entre em contato com a indústria, com as associações, com empresas de maior histórico, com instituições de ensino e que exista uma aproximação e diálogo para que se façam políticas públicas em conjunto”, diz Luiza Guerreiro.
A especialista também aponta o papel do governo na desmistificação de alguns conceitos relacionados aos jogos para que o setor evolua. “Existem muitos mitos ao redor do desenvolvimento de jogos, tanto positivos quanto negativos. Assim como há uma glamourização sobre quem desenvolve, ao mesmo tempo há uma demonização sobre o efeito dos jogos nas pessoas que não é real. Precisamos sair do campo das suposições e que o governo atue em cima da realidade e das verdadeiras necessidades”, conclui Luiza.
Em 2018, o governo Temer divulgou um investimento de mais de R$ 45 milhões em projetos de realidade aumentada (AR) e realidade virtual (VR) por meio do Ministério da Cultura e da Agência Nacional do Cinema (Ancine). No entanto, com a paralisação da Ancine e a suspensão do plano de gestão para 2020, muitos editais foram congelados, o que prejudicou o setor de desenvolvimento de jogos.
Apesar dessas barreiras, Luiza Guerreiro destaca o importante papel que vem sendo realizado pela Agência Brasileira de Promoção de Exportações (ApexBrasil) na divulgação da indústria brasileira de jogos em grandes eventos do exterior. “A Apex é uma das grandes incentivadoras do setor. Faz um trabalho incrível ao incentivar a ida do Brasil para o mundo. É fundamental estarmos presentes nesses grandes eventos e mostramos nossa cara. O que mais precisamos é de apoio para o desenvolvedor brasileiro se posicionar no mercado internacional, que é bastante competitivo”, afirma Luiza, que também destaca a importância de expansão para mercados como o da Ásia.
Formação de mão de obra evolui
Professor de Letramento Digital do Colégio Visconde de Porto Seguro com doutorado na aplicação de videogames na educação e comunicação, Francisco Tupy também acredita que o Brasil ainda está muito atrás de outros países no que diz respeito a incentivos, o que acaba gerando um outro efeito colateral: a perda de mão de obra qualificada.
“Muitas vezes a pessoa que se forma tem talento, mas prefere ir trabalhar no exterior. Os nossos produtores de games, programadores e artistas estão pelo mundo. Existe essa evasão de habilidade, mas o fato é que o Brasil carece de uma política pública uma política não só de governo, mas uma política de Estado que fomente não os games e a economia criativa de um modo geral”, diz o especialista.
No entanto, na visão de Francisco Tupy, a formação de talentos no Brasil vem se desenvolvendo nos últimos anos, não apenas no nível universitário. “A universidade produz duas coisas: formação para uma mão de obra qualificada e pesquisa. A gente já tem uma série de cursos técnicos, tecnólogos e outros tipos de formações que existem, que de fato preparam esses jovens para o mercado de trabalho, mas também há outros campos dentro da política pública, da educação, sociologia, filosofia e psicologia para entender o real impacto dos jogos e tirar proveito deles nesse sistema. O setor acadêmico de produção de mão de obra no Brasil vem se desenvolvendo com extrema qualidade”, aponta Tupy.
Com uma estimativa de crescimento do setor de jogos no Brasil para os próximos anos, a tendência é que o segmento voltado para o desenvolvimento também se beneficie. Se superar algumas barreiras – sobretudo políticas –, conseguir reter mão de obra, apostar em marketing e atrair investimento, é natural que a indústria de games passe a ter um papel de ainda mais destaque, tanto nacional quanto internacionalmente.