Keeper | Review
Acho que foi na biografia de Gala Dalí que li a história de quando seu marido, o pintor surrealista Salvador Dalí, mostrou a ela por primeira vez um quadro com formigas e relógios derretidos. Quando a viu, Gala teria dito que aquela imagem “persistiria para sempre em sua memória”, e assim batizou sem querer a obra como A Persistência da Memória.
Há algo nessa fragmentação dalilesca, nessa fusão perturbadora entre o reconhecível e o absolutamente estranho, que habita também o novo jogo de aventura da Double Fine, publicado por Xbox Game Studios. Keeper reflete muita dessa paleta surrealista em sua geografia de mundos impossíveis, em suas criaturas que não deveriam existir, e principalmente naquele senso de que tudo ali segue uma lógica que não é exatamente a nossa.
Esta aventura, disponível em consoles Xbox Series X|S e computador (Steam e Xbox), não é para todo mundo, mas para te ajudar a entender se você gostaria, eu tento, apenas tento, passar um pouco dessa ambientação inquietante e atípica nesta análise para o Pizza Fria.
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Um farol que anda
A história começa simples: um bando de aves foge de uma massa de partículas lilases enquanto tudo ao seu redor desaba. A ave verde, Ramo, encontra refúgio no topo de um antigo farol, quase aos escombros. Daí, sem explicações – sem uma única palavra em todo o jogo -, o panorama se abre e Keeper espera pacientemente que você, como jogador, dê algum comando ao controle.
Ao experimentar, o farol parece ganhar vida. Seus alicerces se despedaçam e, num gesto de metamorfose tão dalilesco quanto possível, ele cresce quatro pernas aracnídeas feitas de vigas de madeira e se levanta. Ramo permanece em seu telhado metálico enquanto a jornada inexplicável começa.
Não há narração, não há diálogos, não há textos explicativos além dos raríssimos avisos de controle na tela. Keeper é construído integralmente sobre atmosfera e intuição do jogador. Lee Petty, criador do jogo, menciona em entrevistas que todo o projeto nasceu de reflexões sobre isolamento e conexão nos últimos anos, inspirado também por caminhadas e pela ideia do micélio – aquelas redes subterrâneas através das quais fungos e árvores se comunicam. E sim, essa influência ressoa por todo o jogo: uma vida estranha, alienígena, mas pulsante, que busca se conectar.
Nos primeiros mintutos, o farol tenta aprender a andar. Seus passos são desengonçados e ele destrói casas e carros em uma cidade que parece pós-apocalíptica, suas peças caindo sob uma composição de cores que vão do saturado ao escuro, criando, literalmente, uma pintura a cada quadro. A direção de câmera não está em suas mãos – os criadores preferem mudar constantemente os planos, seguindo o farol em dollies, tilts e panorâmicas sutis que não comprometem a jogabilidade.

Jogabilidade
Suas únicas ferramentas são caminhar, direcionar um feixe de luz com o analógico direito – tanto disperso quanto concentrado – e contar com Ramo, um acompanhante alado que manipula objetos que o farol não consegue. Quando você ilumina determinado ponto do cenário com o farol, cogumelos roxos bioluminosos florescem, criando trilhas que indicam o caminho. Plantas laranjas desabrocham quando iluminadas com o feixe concentrado. A luz do farol repele aquela nuvem de partículas roxas que se espalha como uma doença. A natureza reage. O mundo responde.
O jogo é, em sua essência, um passeio contemplativo pontuado por puzzles leves. Você anda por caminhos com poucas ramificações – Keeper é bem linear -, mas quando há uma divisão, cada ramo carrega consigo uma parte da solução de algo maior. Talvez seja esse o resumo perfeito de sua jornada: todas as estradas levam ao mesmo lugar.
As belas plantas laranjas de que falava, desabrocham e reconstroem monumentos antigos esculpidos em pedra. A história é contada sem palavras, apenas por ações e pelo que você consegue interpretar do comportamento desses corpos.

Você encontra criaturas diferentes ao longo do caminho – algumas são pedras empilhadas e vivas, outras são robôs feitos com cortes finos e precisos de metal, ou crustáceos estranhos. Cada população parece ter sido devota de entidades – da natureza, do tempo, de forças que você só percebe através da observação. Experimentar Keeper é um exercício de absorção que desperta interpretação e pede paciência para ser vivido.
Entre os momentos mais notáveis estão as pedras de sol, sol nascente e lua. Quando ativadas, uma animação maravilhosa indica a passagem do tempo, reconstruindo paredes e pontos que no presente estão em ruínas, ou espalhando vinhas se você viaja para o futuro. Ramo sofre o efeito dessa viagem temporal. No futuro, sua forma espiritual toma o lugar do corpo – ele consegue atravessar paredes, mas perde a capacidade de interagir fisicamente. No passado, torna-se um ovo, incapaz de se mover, mas exercendo peso sobre balanças e botões.
Com essas brincadeiras de interruptores e descoberta de soluções, Keeper apresenta quebra-cabeças leves, contemplativas, com pouca resistência de dificuldade. Nada aqui busca frustrar ou punir. O jogo apenas guia você por uma jornada que convida ao desconforto ocasional, mas nunca ao sofrimento. Não há morte, não há fail state. Há apenas o próximo passo, a próxima flor a ser iluminada, o próximo mistério a ser interpretado.

Atmosfera e som
É um jogo excelente para esvaziar a cabeça, ouvir a natureza e a trilha sonora ambiental. A música alcança, em muitos momentos, o poder das trilhas de cinema, embora fique excessivamente cansativa em algumas regiões. Ainda assim, é imprescindível abandonar o mundo real e aumentar o volume para aproveitar Keeper como se deve.
A cinematografia visual reforça isso: cores terrosas e escuras criam um clima mórbido capaz de se levar a sério apenas em medida – há algo de cartunesco na geometria impossível dos mundos, uma sensação de que você está caminhando dentro de um sonho que não segue as leis da física, mas segue uma coerência interna perfeitamente compreensível.
Keeper como experiência
Dado o caráter autoral – e aqui não falo apenas de aspecto visual, mas de jogo como arte -, Keeper se aproxima do que as pessoas chamam de walking simulator, mas com seu próprio feixe de luz como interface com o mundo. Você não pula, não corre, não salta obstáculos. Caminha, ilumina, observa. Twig recolhe. O tempo passa. Estruturas se modificam. A narrativa emerge da sua interpretação. Keeper não busca levar o jogador a superar desafios. Busca apenas guiá-lo por uma jornada leve, contar uma história que reside entre o que você vê e o que você escolhe compreender.
Sobre as inspirações dos criadores, foi engraçado ler sobre Dalí e, depois de jogar Keeper, a conexão fica válida. Sempre gostei de Dalí e recentemente visitei duas cidades importantes para o pintor: Figueres, onde nasceu e onde deixou Gala vivendo em seu castelo, e Cadaqués, onde ele residiu à beira do mar. Uma das confissões dele é que todas suas pinturas retratavam, de alguma forma, a costeira e belíssima Cadaqués.
Inclusive, em A Persistência da Memória, as formações naturais ao fundo retratam a pequena baía às margens de sua casa. Isso, para mim, se tornou indissociável toda vez que vejo uma obra dele. E, em boa medida, a confissão dos criadores de Keeper passa bem essa ambientação – há um senso de que você está explorando um lugar específico, uma geografia que pertence a alguém ou a algo, e que carrega consigo toda uma história de metamorfose e isolamento contemplativo.

Questões técnicas e duração
Joguei a versão do Xbox Series S|X, que vem com o recurso Play Anywhere. Comecei no computador – uma máquina com RTX 3060, 32 GB de RAM e Ryzen 7 – mas descobri rapidamente que, apesar de as recomendações da editora mencionarem uma atualização no lançamento para melhorar o desempenho, o jogo se mostrou extremamente pesado. Mesmo nos níveis mais baixos de detalhe, ainda enfrentei travamentos´, especialmente durante transições de cenas e animações sob demanda. Abrir simultaneamente o OBS para capturar se tornou completamente inviável. Frustrado, migrei para o console, onde o jogo rodou fluído durante toda a sessão.
Aqui, vale mencionar que os desenvolvedores reconhecem que Keeper não está otimizado no lançamento, com patches sendo desenvolvidos para melhorar compatibilidade. Para efeitos dessa análise, recomendo começar pelo console ou plataforma mais poderosa disponível – especialmente se você tiver Game Pass Ultimate, que oferece acesso ao jogo no dia de lançamento tanto no Xbox quanto no PC.
A duração média de uma sessão contemplativa ronda as 7 horas, embora isso possa variar consideravelmente dependendo do seu ritmo. Se você for tipo de jogador que para para deixar a câmera cinética guiar seu olhar enquanto florestas crescem pelo efeito da luz, o tempo se estenderá. Se correr direto para o pico da montanha, talvez termine antes. Não há cronômetro aqui, apenas a sua própria disposição de aproveitar a jornada do farol.

Vale a pena jogar Keeper?
Keeper carrega aquela aura bizarra característica da Double Fine – estética própria, cheia de personalidade, profundamente autoral. Ela não busca agradar a gregos e troianos. A falta de humanidade ou vivacidade te distancia emocionalmente do farol? Justo. Afinal, o que você está vendo é bem especificamente uma construção artística, um jogo-arte, e tal coisa é complicadíssima de julgar por métricas tradicionais.
Eu não recomendaria Keeper para a maioria das pessoas sem conhecê-las muito bem. Isso não significa que haja um demérito no jogo – salvo o exigente desempenho no computador antes do lançamento -, mas Keeper certamente é menos palatável para grandes audiências. É para você se gostar de experiências contemplativas, autorais, fora do circuito principal – aquele nicho menor de quem aprecia obras que subvertem a ideia do que um videogame deveria ser.
Se você não se importa com a irresolutividade de significados ou em criar suas próprias versões de histórias em doses cadenciadas de caminhar, direcionar e investigar pistas sutis nada realmente desafiador, há muito o que absorver em Keeper.
O jogo foi lançado em 17 de outubro de 2025 para Xbox Series X|S, Xbox no PC, Xbox Cloud Gaming (em beta), e Steam. Está disponível em português do Brasil no dia de lançamento com Xbox Game Pass, o que oferece um test-drive com risco mínimo para quem ainda esteja indeciso sobre essa proposta singular.
Requisitos Técnicos:
- Mínimo: Intel Core i7-7700K / AMD Ryzen 5 1600, 16 GB RAM, NVIDIA RTX 2080 / AMD RX 6700 XT, 25 GB
- Recomendado: Intel Core i7-13700K / AMD Ryzen 9 7900X, 32 GB RAM, NVIDIA RTX 4080 / AMD RX 7900 XT, 25 GB
*Review elaborada com código fornecido pela Xbox e Double Fine Productions.
Keeper
Prós
- Visual surreal e direção artística impecável
- Trilha sonora atmosférica e cinematográfica
- Puzzles leves e intuitivos, sem punição
- Ramo e a luz criam mecânicas simples, mas leves e poéticas
- Ritmo contemplativo e autoral
Contras
- Desempenho problemático no PC pré-lançamento
- Temas musicais podem se tornar cansativos
- Linearidade pode desagradar quem busca desafio
- Distanciamento emocional do protagonista
- Público-alvo muito restrito


